terça-feira, 31 de agosto de 2010

EVANGELHOS: O QUE LEVOU CADA UM DOS QUATRO EVANGELISTAS A ESCREVER UM EVANGELHO

Jefferson Magno Costa
     Lucas nos diz expressamente o motivo que o levou a escrever seu evangelho: “Para que conheças a certeza das coisas de que já estás informado” (Lc 1.4). Ou seja: Para que, recordando-as continuamente, tenhas segurança, e na segurança, permaneças. Quanto a João, ele manteve-se silencioso com relação à  causa que o levou a escrever seu evangelho. Mas há uma tradição antiga, que chegou até nós, através da qual ficamos sabendo que João não resolveu escrever por puro acaso.
     E o motivo foi este: como os outros três evangelistas haviam se empenhado amplamente em destacar o grandioso fato de Deus ter-se feito homem e nascido entre nós, deixando em silêncio o sublime assunto da divindade de Jesus, para preencher essa lacuna, João recebeu, muitos anos depois que os outros três evangelistas escreveram, inspiração do próprio Senhor, e escreveu o quarto evangelho.
     E esse grandioso empenho de João em destacar a divindade de Jesus é fácil de ser constatado não só por tudo o que o evangelista narrou, mas sobretudo pelo prólogo do quarto evangelho: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez” (Jo 1.1-3).
     João não começa o seu evangelho, como os outros evangelistas, por assuntos terrenos, e sim por assuntos celestiais, que é o que lhe interessava, e fundamentado neles, compôs o quarto evangelho.
     Também é tradição que Mateus, por solicitação dos judeus que se haviam convertido, deixou-lhes por escrito tudo o que lhes pregara por palavra, compondo o seu evangelho na língua hebraica. Por estar escrevendo para judeus, Mateus empenhou-se com afinco em demonstrar-lhes que Cristo descendia de Abraão e de Davi.
     Atendendo também a pedidos de muitas pessoas que se haviam convertido nas mais variadas cidades daquela época, Marcos compôs o seu evangelho no Egito, fundamentando-se em tudo o que o apóstolo Pedro lhe contara.
     Mateus começa seu evangelho imediatamente pela genealogia de Jesus, porque nada pode tranquilizar tanto a um judeu como saber que Cristo, o Messias, descendia de Abraão e de Davi, e que ele viera para trazer salvação ao povo judeu. Porém Lucas, falando universalmente para todos, conduz o início de sua narrativa para trás, recuando, no capítulo da genealogia de Jesus (Lc 3.23-38), até Adão, pois Cristo viera para salvar não só o povo judeu, mas toda a humanidade.
     (Trecho das Noventa Homilias sobre o Evangelho de Mateus, pregadas na Igreja de Antioquia, entre os anos 390 a 398, por João Crisóstomo, o maior pregador da língua grega após o apóstolo Paulo. Tópico 4 da 1ª Homilia. Traduzido e adaptado para o leitor do século 21).
     Jefferson Magno Costa

EVANGELHOS: PORQUE OS QUATRO EVANGELISTAS DISCORDARAM EM ALGUNS DETALHES NAS SUAS NARRATIVAS

Jefferson Magno Costa
     Por que será que sendo tantos os discípulos do Senhor, só dois apóstolos escreveram dois dos quatro evangelhos? Os outros dois evangelhos foram escritos por dois companheiros dos apóstolos. Por quê? Além de Mateus e João, discípulos do Senhor, os outros dois evangelistas foram um companheiro de Paulo (Lucas) e um companheiro de Pedro (Marcos).
     O motivo de outros, entre os apóstolos, não terem escrito mais evangelhos, é que nada faziam por ambição de honra, mas unicamente com o objetivo da utilidade. Ora, mas será que não teria sido suficiente um único evangelista para contar tudo? Sim, certamente que teria sido. Mas o fato de terem sido quatro os que escreveram os evangelhos, e o fato de não os terem escrito na mesma data, nem no mesmo lugar, nem depois de se reunirem para entrar em acordo e, assim mesmo, os quatro terem falado como se fossem uma única boca, é a prova máxima da verdade.
     Porém, alguém pode replicar que o que aconteceu foi exatamente o contrário; ou seja: os evangelhos apresentam discordância em alguns detalhes. Pois eis aí outro aspecto ultraimportante em favor de sua veracidade. Porque se concordassem exatamente em tudo – no lugar, no tempo e nas mesmas expressões – os inimigos da Verdade se levantariam unanimemente para acusar os evangelistas de terem se reunido antes de escrever seus evangelhos, e entrado em acordo no que tange a todos os detalhes dos fatos, pois uma total concordância é humanamente impossível.
     Porém, esse desacordo, que não passa de um aparente desacordo nos detalhes, isenta os evangelistas de toda suspeita, e é a mais brilhante defesa do caráter deles. Porque, se eles contaram alguma coisa de maneira diferente com relação às circunstâncias de lugar e de tempo, nada disso prejudica a essência da Verdade.
     O que eu gostaria que vocês tivessem certeza é que, nos pontos principais do que diz respeito aos deveres da nossa vida cristã e ao objetivo da nossa fé, não há nos evangelhos a mínima discrepância. Que pontos principais são esses? Que Deus fez-se homem, que realizou milagres, que foi crucificado, que foi sepultado, que ressuscitou, que subiu ao Céu, que há de julgar a humanidade, que nos deixou seus mandamentos de salvação, que não estabeleceu uma lei contrária à antiga, que é Filho, que é Unigênito, que o é por natureza, que é da mesma substância do Pai, e outras verdades semelhantes. Acerca de tudo isto, o que se constata é que há nos quatro evangelhos perfeita harmonia.
     Também não devemos nos abalar diante do fato de, com relação aos milagres, nem todos os quatro evangelistas terem narrado todos, e sim uns contaram uns, e outros contaram outros. Porque se todos tivessem contado todos, não haveria porque terem sido quatro os evangelistas, ou se todos tivessem contado coisas diferentes e novas entre si, não teríamos hoje como provar a concordância entre eles.
     Por um lado, todos contaram muitas coisas em comum; e por outro, cada um apresenta detalhes peculiares a cada um, e o resultado disto é que, na narração de nenhum deles, nada há que pareça supérfluo ou acrescentado aleatoriamente, mas tudo contribui para nos dar um contraste seguro da Verdade que os quatro narraram.
    (Trecho das Noventa Homilias sobre o Evangelho de Mateus, pregadas na Igreja de Antioquia, entre os anos 390 a 398, por João Crisóstomo, o maior pregador da língua grega após o apóstolo Paulo. Tópico 3 da 1ª Homilia. Traduzido e adaptado para o leitor do século 21).
    Jefferson Magno Costa

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

MATEUS: O PRIMEIRO EVANGELISTA A ESCREVER SOBRE A “BOA NOVA”

Jefferson Magno Costa 
 Mateus, com muita propriedade, chamou sua obra de evangelho ou “boa nova”, pois escreveu para anunciar a todos a anulação da sentença de morte que pesava sobre todos nós; o perdão dos nossos pecados trazido por Jesus Cristo, a justiça, a santidade, a redenção, a filiação divina, a herança dos céus, nosso parentesco com o Filho de Deus.
     Todas essas notícias estavam sendo dadas a inimigos, a ingratos, a quem ainda vivia assentado nas trevas da morte. Que notícias podem ser comparadas a estas? Deus sobre a terra, para que o homem possa subir para o Céu! E tudo misturou-se: os anjos faziam coro com os homens, e os homens comunicavam-se com os anjos.
     A antiga inimizade foi desfeita, nossa natureza foi reconciliada com Deus, o diabo ficou confuso, os demônios fugiram em debandada, o paraíso foi reaberto, a morte sofreu grande derrota, a maldição foi desfeita, a “boa nova” da redenção passou a ser semeada, e a vida futura no céu começou a ser plantada na terra. Os anjos passaram a frequentar a terra continuamente, e nós pudemos olhar para a vida eterna com total confiança.
     Por isso Mateus chamou de “boa nova” o seu relato, como se tudo o mais não passasse de meras palavras desprovidas de sentido. Tudo o mais: a abundância de riquezas humanas, a grandeza de poder segundo a ótica dos homens, suas dignidades, suas honras e tudo o que os seres humanos consideram bens.
     Isto que os pescadores anunciaram, pode ser chamado autêntica e propriamente de boa notícia, boa nova, não só porque são bens firmes e inabaláveis, que estão acima dos nossos méritos, mas também porque nos foram dados gratuitamente. Não recebemos o que recebemos porque tenhamos antes trabalho e suado para merecê-lo. Não o recebemos por nos termos cansado e sofrido para alcançá-lo, mas unicamente porque Deus nos amou.
(Trecho das Noventa Homilias sobre o Evangelho de Mateus, pregadas na Igreja de Antioquia, entre os anos 390 a 398, por João Crisóstomo, o maior pregador da língua grega após o apóstolo Paulo. Tópico 2 da 1ª Homilia. Traduzido e adaptado para o leitor do século 21).




Jefferson Magno Costa

sábado, 28 de agosto de 2010

LEI E PENTECOSTE: COMO FORAM DADOS POR DEUS

Jefferson Magno Costa
    E para que não aconteça que alguém, por ignorância, deixe de dar o devido valor às Sagradas Escrituras, vejamos, antes de tudo, como foi dada a antiga Lei, e como aqueles que receberam a nova Lei foram capacitados para levá-la ao mundo, a partir do Pentecoste. 
    De que maneira, quando e onde foi dada a antiga Lei? Foi dada após o extermínio dos egípcios no mar Vermelho. Foi dada no deserto, sobre o monte Sinai, no momento em que do monte se elevavam fumaça e fogo. A trombeta tocava, ressoavam os trovões, relâmpagos cortavam o Céu, e Moisés penetrava dentro da própria escuridão. 
    Nada disto aconteceu no Dia de Pentecoste, quando o Senhor Jesus validou, através do Espírito Santo, a responsabilidade que os discípulos tinham de propagar a nova Lei. Não houve nem deserto, nem monte, nem fumaça, nem trevas, nem relâmpagos, nem trovões. Tudo aconteceu no começo do dia, dentro de uma casa, enquanto todos estavam tranquilamente sentados. O motivo dessa diferença foi que, para pessoas que não usam com muita frequência a razão, e possuem natureza difícil (dura cerviz), era necessário todo aquele aparato material de deserto, monte, fumaça, soar de trombetas, e tudo o mais.
     Porém, de nada disto necessitavam aqueles que estavam em uma esfera mais elevada, eram mais dóceis, e haviam-se erguido acima de todo pensamento material. E se é correto observar que no Cenáculo também foi ouvido “um som, como de um vento veemente e impetuoso” (At 2.2), é também correto não esquecer que esse som não aconteceu para impressionar os discípulos, e sim para chamar a atenção dos judeus estrangeiros que estavam em Jerusalém, assim como o fenômeno das línguas de fogo repartidas sobre os discípulos, e suas consequências, tudo acontecendo inicialmente para atrair a atenção deles e maravilhá-los (At 2.3,6-11).
    Ora, mesmo depois que viram todos aqueles prodígios, alguns judeus ainda foram capazes de dizer que os discípulos estavam cheios de vinho (mosto) (At 2.13). O que teriam dito se não tivessem visto nada daquilo? Devemos considerar também que, no Sinai, quando Moisés subiu, a glória de Deus desceu. Por tudo o que vimos no Cenáculo, quando a nossa natureza pecaminosa ergue-se até a presença do Senhor, não só o Céu desse, mas o próprio Trono Régio de Deus vem até nós, e o Espírito Santo manifesta-se em nosso meio, com poder e grande glória.
    Se o Espírito Santo fosse menor do que as outras pessoas da Trindade, suas obras não seriam tão maravilhosas. E é assim que as tábuas da nova Lei são melhores que as da Lei anterior. Pois os apóstolos não desceram do monte conduzindo em suas mãos, como Moisés, tábuas de pedra, mas levavam em sua alma e no seu coração o Espírito Santo. E era do coração deles, habitado pelo Espírito Santo, que saía o tesouro e brotava a fonte de seus ensinamentos, de seus dons, e de todos os bens que  espalhavam prodigamente entre o povo.
      Movidos pelo Espírito Santo, deram a volta ao mundo, como se fossem livros vivos e leis vivas, cheios do conhecimento, do poder e da graça de Deus. Desta forma conquistaram para Cristo aqueles três mil ouvintes, depois cinco mil, depois o mundo inteiro de sua época, pois através da língua deles Deus falava a todos os que se aproximaram para ouvi-los.
(Trecho das Noventa Homilias sobre o Evangelho de Mateus, pregadas na Igreja de Antioquia, entre os anos 390 a 398, por João Crisóstomo, o maior pregador da língua grega, após o apóstolo Paulo. Tópico 1 da Homilia . Traduzido e adaptado para o leitor do século 21).
Jefferson Magno Costa    

BÍBLIA: NÓS NÃO DEVERÍAMOS NECESSITAR DAS SAGRADAS ESCRITURAS

Jefferson Magno Costa    
 Bom seria que não tivéssemos necessidade das Letras Sagradas para a nossa conduta moral, e sim que a nossa vida fosse tão pura, que a graça do Espírito Santo ocupasse o lugar da Bíblia em nossas almas. E assim como a Bíblia foi escrita com tinta, da mesma forma nossos corações estivessem escritos com as letras de fogo do Espírito Santo. Mas já que perdemos essa graça, aproveitemos em sua plenitude os ensinamentos das Sagradas Escrituras.
     Com Noé, com Abraão e com seus descendentes, assim como com Jó e com Moisés, Deus não tratava através de letras, e sim falando-lhes pessoalmente, pois encontrava neles uma alma limpa. Porém, uma vez que o povo hebreu afundou no abismo da maldade e do pecado, surgiu a necessidade de letras e de tábuas, para que através delas se mantivesse viva a recordação dos preceitos de Deus.
      Esta situação da não necessidade de letras escritas como regras para a conduta na vida coube tanto para os santos do Antigo Testamento quanto para os do Novo. Porque também aos apóstolos Jesus não deu nada por escrito. Em vez de letras, prometeu-lhes que lhes daria a graça do Espírito Santo: “Mas aquele Consolador, o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, vos ensinará todas as coisas e vos fará lembrar de tudo quanto vos tenho dito” (Jo 14.26).
      E para que entendamos que esta maneira de Deus tratar conosco era muito melhor, lembremo-nos do que o Senhor havia dito através do profeta Jeremias: “Mas este é o concerto que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o Senhor: porei a minha lei no seu interior e a escreverei no seu coração; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo” (Jr 31.33). 
     O apóstolo Paulo, no intuito de destacar essa excelência, disse que os cristãos receberam os mandamentos de Deus não mais em tábuas de pedra, e sim sobre as tábuas de carne do coração: “Porque já é manifesto que vós sois carta de Cristo, ministrada por nós e escrita não com tinta, mas com o Espírito do Deus vivo, não em tábuas de pedra, mas nas tábuas de carne do coração” (2Co 3.3).
      Mas já que também os cristãos, passado algum tempo, também se desviaram, uns em matéria de doutrina, outros em seus costumes, da mesma forma tornou-se necessário fazê-los recordar dos preceitos do Senhor através de palavras escritas. 
     Porém, consideremos ainda a grande diferença que há entre aquilo que éramos com aquilo que somos. Os primeiros homens e as mulheres de Deus viviam em tal pureza, que era suficiente apresentar seus corações ao Espírito Santo para que ele os enchesse com as riquezas da graça de Cristo, porém hoje nós precisamos das orientações de Deus por escrito.
      Ora, já que nossa natureza degenerou-se tanto que tornaram-se necessárias as Escrituras Sagradas escritas com tinta, em virtude de não permitirmos mais que o Espírito Santo seja unicamente aquele que nos guia, imaginemos quão grave pecado será não querermos também nos aproveitar dessa segunda ajuda, que é a Palavra de Deus escrita para nós, e a desprezarmos como se ela fosse coisa vã e inútil, conforme fazem muitos dos que a conhecem.
      (Trecho das Noventa Homilias sobre o Evangelho de Mateus, pregadas na Igreja de Antioquia, entre os anos 390 a 398, por João Crisóstomo, o maior pregador da língua grega, após o apóstolo Paulo. Introdução à Homilia 1ª. Traduzido e adaptado para o leitor do século 21).
Jefferson Magno Costa           
           

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

JESUS: QUATRO COISAS QUE ELE CONHECIA DO SEU AMOR

Jefferson Magno Costa
         Quatro coisas podem contribuir para diminuir muito em uma pessoa que ama, a perfeição e o mérito do seu amor: Ou porque não conhece a si mesma; ou porque não conhece a quem ama; ou porque não conhece o amor; ou porque ignora a situação à qual esse amor a pode levar, se ela continuar amando.
   Se a pessoa não conhece a si mesma, talvez ocupe o seu pensamento em alguém em quem não ocuparia, caso se  conhecesse. Se não conhece a quem ama, talvez ame apaixonadamente a quem não amaria, caso soubesse quem realmente é essa pessoa. Se não conhece o amor, talvez se concentre cegamente em um sentimento no qual não se concentraria, se tivesse consciência mais profunda desse sentimento. Se não conhece quais serão as consequências desse amor, talvez sofra os danos que não sofreria, caso lhes fossem desvendados antecipadamente esses danos, antes de os sofrer.
    Todas essas coisas que os homens muitas vezes ignoram quando amam, Jesus, o único que amou com perfeição neste mundo, as conhecia perfeitamente. Ele conhecia a si mesmo, conhecia a quem amava, conhecia o seu amor, e sabia quais seriam as consequências desse amor, se continuasse amando. E todos esses detalhes registrou o evangelista João.
    Jesus conhecia a si mesmo, pois sabia que “o Pai tinha depositado nas suas mãos todas as coisas, e que havia saído de Deus, e que ia para Deus” (Jo 13.3). Conhecia a quem amava, pois sabia o quanto os homens eram ingratos, e quão cruéis haviam de ser com ele, “porque bem sabia ele quem o havia de trair” (Jo 13.11). Jesus também conhecia o amor, e seu coração tinha uma longa experiência em amar. “Como havia amado os seus que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13.1). E, finalmente, sabia qual seria a consequência do seu amor: a morte, pois estava ciente de que “já era chegada a sua hora de passar deste mundo para o Pai...” (Jo 13.1).
    Para considerarmos quão grande foi esse amor de Cristo por nós, consideremo-lo por partes.
    1- Primeiramente, o amor de Jesus por nós foi imenso, porque ele nos amou conhecendo a si mesmo. Que Jesus tenha nos amado conhecendo a si mesmo, é algo digno de grande admiração.
    Conta a história de Tróia, que enquanto Páris, ignorando quem ele era e onde havia nascido, guardava as ovelhas do seu rebanho nos campos do monte Ida, namorava a formosíssima e rústica pastora Enome. Porém, quando Páris descobriu que era filho de Príamo, rei de Tróia, abandonou o cajado, as ovelhas e a pastora. Enquanto supunha que não passava de um humilde pastor, amava a moça humildemente. Porém, assim que descobriu quem ele era, desconheceu aquela a quem amava.
    Como o seu amor pela pastora fundamentava-se no desconhecimento que tinha de si, o mesmo conhecimento que desfez sua ignorância sobre si mesmo pôs fim ao amor que ele tinha por ela. O príncipe deixou de amar a pastora que havia amado quando era pastor.
    Ah, Príncipe da Glória! Parece que a mesma coisa deveria acontecer contigo! Quem ouvir dizer que o Filho de Deus, quando esteve entre nós, nos amou de uma maneira tão extrema, pode ficar na dúvida se o Senhor realmente se conhecia, ou se nos amou tão-somente porque não sabia quem ele era! Pois para que o mundo não caia em tal engano, ou algum de nós não fique temeroso de perder o amor e ser abandonado pelo Príncipe Eterno, saibam todos (diz o evangelista) que Cristo nos amou conhecendo-se plenamente, sabendo que “havia saído de Deus, e que ia para Deus” (Jo 13.3).
    Se Cristo não se conhecesse, não seria muito de admirar que nos amasse; mas amar-nos conhecendo-se, é amor que causa imensa admiração. É isto amor, Deus meu, ou ignorância de ti mesmo? Tu nos amas, ou tu te desconheces? Essa mesma dúvida teve Pedro quando viu o Senhor Jesus ajoelhado diante dele, preparando-se para lavar os seus pés. Ali estava o Filho de Deus diante de um grande pecador.
     Pedro reagiu imediatamente: “Senhor, tu lavas-me os pés a mim?” Era como se Pedro estivesse dizendo: “Parece, Senhor, que tu não conheces a ti, nem conheces a mim.” Mas o certo, ó Senhor, é que quanto a ti, tu ti conheces perfeitamente, e quanto a nós, tu nos amas infinitamente. E é tão imensa a tua sabedoria em conhecer essas desproporções, como imenso é o teu amor em ajuntar essas distâncias. Mas em um amor infinito bem podem caber distâncias infinitas. Assim o provam as mãos de Deus juntas com os pés dos homens. “...sabendo que o Pai havia depositado nas suas mãos” (Jo 13.3), eis aí as mãos de Deus. “...começou a lavar os pés aos discípulos” (Jo13.5), eis aí os pés dos homens. (Exporemos os três outros pontos deste sermão quando atualizarmos em breve este blog).
    (Trechos do Sermão do Mandato, pregado na Capela Real de Lisboa, em 1645, pelo maior pregador da língua portuguesa, Antônio Vieira. O pregador estava com 37 anos. Adaptado e atualizado para o leitor do século 21).
Jefferson Magno Costa

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

BAJULAÇÃO: DEVEMOS TEMER MAIS A LÍNGUA DO BAJULADOR DO QUE AS MÃOS DO PERSEGUIDOR

Jefferson Magno Costa


            Aurélio Agostinho (Numídia, Argélia,354-430,Hipona, Argélia), autor cristão extraordinário em todos os assuntos, utilizando doutrina tirada da escola do rei Davi, ensina que há dois tipos de inimigos: uns que perseguem, outros que bajulam. Agostinho disse que devemos temer mais a língua do bajulador que a mão do perseguidor.
     A mão do perseguidor arma-se com a espada, com a lança, com a seta, com o veneno, e com todos os demais instrumentos de ferir e matar. Porém, temos que temer muito mais a língua aparentemente desarmada do bajulador, pois é muito mais perigosa que todas essas armas do perseguidor juntas.
     Alguns autores comparam o bajulador ao camaleão, que não tendo cor própria nem definida, reveste-se e pinta-se de todas as cores, quaisquer que sejam as do objeto vizinho. Outros o comparam à sombra, que não tem outro movimento que não seja imitar o corpo interposto à luz, do qual nunca se separa, e sempre e para qualquer parte o segue.
     Outros comparam o bajulador ao espelho, retrato natural e recíproco de quem nele se vê. Por que se tu o olhares, ele olhará para ti. Se tu rires, ele rirá. Se chorares, ele chorará. Porém, serão lágrimas sem dor e riso sem alegria. Todavia, como o camaleão, a sombra e o espelho são imitadores mudos, a comparação que Agostinho fez do bajulador é a mais adequada e melhor de todas. Ele o comparou ao eco.
     O eco sempre repete o que diz a voz, e não sabe dizer outra coisa. Onde as concavidades são muitas, é cena verdadeiramente divertida ver como os ecos vão se respondendo sucessivamente uns aos outros, e todos sem variação, dizendo a mesma coisa. É assim que agem os bajuladores. O que disse a primeira voz, é o que todos repetem uniformemente.
     Se o rei disser que quer iniciar uma guerra, mesmo que essa guerra seja de consequências perigosas, o que os ecos respondem? Guerra! guerra! guerra! Mas se o rei disser que quer declarar paz, mesmo que a ocasião seja desaconselhável e as condições impostas pelo inimigo sejam indecorosas, o que os ecos respondem? Paz! paz! paz! Se o rei disser que quer enriquecer os cofres públicos, mas para isso terá de aumentar consideravelmente os impostos, ainda que seus pretextos tenham mais de egoísmo e vaidade que de utilidade, o que os ecos respondem? Impostos! impostos! impostos! Da mesma forma agem os bajuladores.
     Sêneca dizia que preferia muito mais ofender o rei com a verdade, do que agradá-lo com a bajulação. Mas quem era Sêneca? Um grande filósofo estóico. Ele ensinava que a pessoa que possuía a maior riqueza era aquela que sabia viver sem depender de nenhuma. E ele mesmo praticou isso, pois sendo um homem riquíssimo, renunciou a todas as suas riquezas e entregou-as ao Estado romano. Ora, um homem que foi capaz de aumentar os tesouros do rei com a doação dos seus bens, tinha coragem e autoridade suficientes para correr o risco de ofender o rei com a verdade do que agradá-lo com a adulação.
     Porém, aqueles que querem remediar a sua pobreza, melhorar a sua casa ou alimentar a sua vaidade com os tesouros do rei, que podemos esperar deles? Que digam cinquenta adulações para conseguir um cargo, e que não se atrevam a dizer meia verdade, para não perdê-lo.
     Diógenes, outro grande filósofo da antiguidade, que jamais concordou em adular os reis em troca de riquezas ou cargos, era tão pobre que não tinha sequer uma choupana para morar, e vivia dentro de um barril. O imperador Alexandre o Grande ouviu falar de Diógenes e quis conhecê-lo. Encontrou-o em uma planície perto de um bosque, com o semblante sereno e feliz, calmamente sentado dentro do seu barril, apreciando a natureza enquanto meditava.
     Alexandre o Grande ficou impressionado ao ver um homem tão desprendido dos bens materiais, exatamente o oposto dele e de todos os bajuladores que o cercavam. Como era o rei mais poderoso do mundo naquela época, Alexandre disse a Diógenes que lhe pedisse o que quisesse. Diógenes respondeu: “Peço-te que não me tires o que não me podes dar.” Diógenes disse isto porque era Inverno, e Alexandre, ao parar diante do filósofo, estava impedindo, com a sombra do seu corpo, que Diógenes continuasse tomando o seu banho de sol. Alexandre virou-se para os ministros e generais que o acompanhavam e comentou: “Se eu não fosse Alexandre, o único homem que eu gostaria de ser nesse mundo era Diógenes.”
     Durante todo o tempo em que o rei Dionísio dominou a Sicília, não conseguiu subornar o grande filósofo Diógenes para fazê-lo parar de dizer-lhe algumas verdades. Diógenes, que era admirado por todos por sua coragem, sinceridade, e porque jamais aceitara vender sua consciência, estava certa vez lavando algumas ervas para comer, quando um dos bajuladores do rei aproximou-se e disse-lhe: “Se tu adulasses ao rei Dionísio não comerias ervas.” Imediatamente, Diógenes respondeu: “E se tu te contentasses em comer ervas, não precisarias adular a Dionísio.”
     Perguntaram certa vez a Biantes, um dos sete Sábios da Grécia, qual era o animal mais venenoso do mundo, e ele respondeu: “Dos bravos o tirano, dos mansos o bajulador.” Ao chamar a adulação de veneno, Biantes acertou em cheio; porém, ao distinguir o tirano do adulador, Biantes não foi muito feliz, porque todo adulador é um tirano.
     O maior tirano que houve no tempo do nosso Salvador Jesus Cristo foi Herodes. Porém, os seus bajuladores ainda foram maiores tiranos que ele, porque o rei foi o tirano dos seus vassalos, e os bajuladores foram os tiranos do rei.
     O texto do profeta Miquéias que os bajuladores explicaram a Herodes sobre o nascimento do novo Rei, fala expressamente de dois nascimentos do Messias, um temporal, como homem, e outro eterno, como Deus. O temporal como homem: “...de ti me sairá o que será Senhor em Israel” (Mq 5.2a), e o eterno como Deus: “e cujas saídas são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade” (Mq 5.2b).
     O que os escribas e os príncipes dos sacerdotes, os maiores bajuladores de Herodes, fizeram na tentativa de dar pistas sobre o nascimento do Messias àquele rei que se perturbara e deixara todos perturbados ao saber que um rei ameaçador do seu trono havia nascido? (Mt 2.3,4). Na tentativa de ajudar aquela raposa traiçoeira, os bajuladores citaram a passagem profética de Miquéias. Mas só citaram a primeira parte, que fala sobre a natureza humana de Jesus, silenciando totalmente sobre a segunda natureza, a divina: “E tu, Belém, terra de Judá, de modo nenhum és a menor entre as capitais de Judá; porque de ti sairá o Guia que há de apascentar o meu povo de Israel.” (Mt 2.6).
     Tendo sido enganado por seus bajuladores, Herodes supôs que aquele que havia nascido em Belém era tão-somente homem e não Deus, e que podia matá-lo. E a consequência dele pensar assim foi o decreto da morte dos inocentes (Mt 2.16). Sendo um assunto tão grave, o mais grave que poderia haver naquela corte, pois envolvia a coroa e a salvação de Israel, aqueles enganadores citaram a profecia de Miquéias pela metade, com o intuito de, através de uma meia-mentira e uma bajulação, traquilizarem o coração amedrontado daquele tirano. Vejam em que pode resultar a bajulação! Muitas crianças inocentes foram mortas graças à atitude dissimulada e falsa de um bando de bajuladores.
     (Trechos do Sermão da Primeira Sexta-Feira da Quaresma, pregado na Capela Real de Lisboa, em 1651, pelo maior pregador da língua portuguesa, Antônio Vieira. Ele estava com 43 anos de idade. Adaptado e atualizado para o leitor do século 21).
Jefferson Magno Costa

sábado, 14 de agosto de 2010

OUVIR: CADA UM OUVE CONFORME O SEU CORAÇÃO

   Jefferson Magno Costa

      Os corações também têm orelhas. E estejam certos de que cada pessoa ouve não conforme a capacidade dos seus ouvidos, e sim conforme a inclinação do seu coração.
      Enquanto Moisés estava no monte Sinai recebendo a Lei de Deus, os judeus pediram a Arão que lhes fundisse um bezerro de ouro. No primeiro dia da dedicação daquela imagem, o povo celebrou com grandes festas. Quando Moisés e Josué começaram a descer do monte, ouviram as vozes do povo lá embaixo. Disse Josué a Moisés: “Alarido de guerra ouço no arraial.” Porém, Moisés comentou: “Não é alarido dos vitoriosos, nem alarido dos vencidos, mas o alarido dos que cantam eu ouço” (Ex 32.17,18).
    Se as vozes eram as mesmas, como a um pareceram pessoas cantando, enquanto a outro pareceram rumores de guerra? A razão é clara. Moisés era um líder religioso, Josué era um soldado. A um líder religioso, as vozes pareceram-lhe um coral cantando; a um soldado, pareceram-lhe gritos de guerra. Cada um ouviu conforme a inclinação do seu coração.
    São os ouvidos que ouvem. Porém, quem ouve bem ou quem ouve mal são os corações. Tudo o que entra pelos ouvidos faz eco no coração. Conforme a inclinação do coração, assim se formarão os ecos  (...). 
     Notável é o artifício com que a natureza formou os nossos ouvidos. Cada ouvido é um caracol. Portanto, não é de admirar que as palavras, após entrarem pelos ouvidos e passarem pelo oco desse parafuso, saiam algumas vezes distorcidas. Vejamos um exemplo envolvendo o Salvador.
   Disse Jesus certa vez aos seus ouvintes: “Abraão, vosso pai, exultou por ver o meu dia [ou seja: desejou ver a minha vinda ao mundo], e viu-o, e alegrou-se.” (Jo 8.56). Estas foram as palavras que entraram pelos ouvidos dos escribas e fariseus. Mas o que foi que saiu por suas bocas? “Ainda não tens cinquenta anos e viste Abraão?” (Jo 8.57). 
    Observem como as palavras foram distorcidas no trajeto dos ouvidos à boca. Cristo disse que tinha sido Abraão que O vira; mas os fariseus disseram que tinha sido Jesus que vira a Abraão. As pessoas ouvem conforme a inclinação do seu coração.

   (Trecho do Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, pregado em 1654, na Igreja Maior do Colégio de São Luis do Maranhão, pelo maior pregador da língua portuguesa, Antônio Vieira. Atualizado e adaptado para o leitor do século 21).
Jefferson Magno Costa  

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

JESUS: LIÇÕES DE SUA HUMILDADE

Jefferson Magno Costa
          O Filho de Deus, quando adulto, declarou que não tinha onde reclinar a cabeça, e quando criança, coube em uma gruta onde se abrigavam animais. E tu edificas palácios luxuosos e magníficos para abrigar tua vaidade.
     O Criador dos anjos, quando esteve reclinado no presépio, foi coberto por panos humildes, e tu, que foste criado do barro, e não passas de um escravo que o Senhor Jesus remiu, cobre-te de ouro e púrpuras.
     Que coisa mais escandalosa ver que, enquanto o Deus do céu apresentou-se entre nós tão pequenino, tu queiras ser grande? E que coisa mais espantosa ver que, enquanto a Majestade do Céu se encolhe, o bichinho da terra se inche? (...)


O QUANTO JESUS SE ESVAZIOU DA SUA GLÓRIA PARA NASCER ENTRE NÓS
     No Evangelho de Lucas, temos o mais rico e ao mesmo tempo o menor versículo biográfico sobre Jesus (2.21).
     Nesse versículo, temos a eternidade do Verbo reduzida a oito dias; temos a grandeza e a imensidade de Deus reduzida ao corpinho de um Menino; temos o preço infinito do sangue de Cristo, que será futuramente derramado, reduzido às poucas gotas de sangue do golpe da circuncisão; e temos todos os nomes do próprio Senhor, que são inumeráveis e incompreensíveis, reduzidos a um só nome: Jesus. 


     (Trechos do Sermão do Nascimento do Menino Deus, pregado no Colégio dos Jesuítas, na Baía, em data incerta. Foi o primeiro sermão pregado por Antônio Vieira, que devia estar com menos de 25 anos de idade.)

sábado, 7 de agosto de 2010

ESCOLHA: O QUE DEUS É CAPAZ DE FAZER QUANDO QUER CONVOCAR ALGUÉM PARA REALIZAR A SUA OBRA

Jefferson Magno Costa
    
     No deserto de Midiã apareceu uma sarça entre chamas de fogo; o fogo queimava, mas a sarça não se consumia. E por trás dessa cortina de fogo, quem estava? O próprio Deus, que havia descido do Céu à Terra. E para quê? Para convocar como operário de Sua Obra um homem que estava apascentando o rebanho de seu sogro naquele deserto, um homem chamado Moisés, que se havia retirado da corte de Faraó há 40 anos. 
    Para rogar àquele homem que aceitasse servi-Lo no imenso empreendimento de tirar o Seu povo do cativeiro do Egito, Deus havia descido do Céu à Terra. E como demonstração do quanto ajudaria aquele obreiro na missão para a qual o estava convocando, o Senhor lhe emprestaria até o Seu título de Deus (Ex 4.15,16).
    Ó quão grande lição de humildade está dando o Senhor aqui à vaidade e à inchação humanas! Para buscar um pastor em um deserto, não por que não pudesse agir sem ele, mas para resgatar a sua auto-estima e dignidade, e usá-lo em Sua Obra, desceu do Céu à Terra o próprio Deus que criou os homens, o Céu e a Terra! E muitos homens, que esquecem que não são deuses, negam-se a descer do seu pedestal de orgulho para convocar ao serviço de Deus homens que o próprio Deus desceria do Céu para convocar.
    E se porventura alguém pensar que Deus agiu assim com Moisés por ser Deus, mas não agiria desta forma se fosse homem, consideremos um caso em que Ele, sendo homem, empenhou-se grandiosamente na convocação de outro obreiro para sua Seara.
    Jesus Cristo, Deus e homem, já cumprira o seu ministério salvífico entre nós e, em corpo glorioso, já estava assentado à dextra do Pai, quando nas proximidades de Damasco um homem chamado Saulo   foi subitamente cercado por um imenso clarão de luz do Céu, tão intenso que o derrubou por terra. Imediatamente, ele ouviu uma voz que lhe dizia: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9.4). Os homens que o acompanhavam ouviram, espantados, a voz, mas não viram ninguém. A visão e a convocação naquele momento era para um homem só, e o seu nome era Saulo.
    Mas de quem seria aquela voz? Era do próprio Jesus, conforme Paulo declararia mais tarde. Cristo em pessoa havia descido até às portas de Damasco para converter a Saulo.
     Ora, por que, para converter um homem, e um homem que naquele momento era Seu inimigo e perseguidor, o Filho de Deus deixou o trono de Sua Majestade e veio à Terra com poder e grande glória, e falou com ele, chamando-o duas vezes por seu próprio nome? A razão disto o próprio Jesus deu a Ananias, ao dizer-lhe que Paulo era para Ele um vaso de eleição; fora escolhido para levar o Seu nome aos gentios, aos reis, e aos filhos de Israel (At 9.15).
    Cristo, que é Deus e homem, deixou o Trono de Sua Majestade e desceu do Céu à Terra para convocar para Sua Obra um homem cujo talento para O servir Jesus reconheceu durante a própria guerra que Saulo fazia contra Ele.
     Se Cristo agiu assim, por que será que os homens que estão em posição de mando, mas que não são deuses, acham que é diminuição de sua grandeza descer do pedestal de poder em que estão a fim de convocarem homens de talento para servirem a Deus na obra que Deus confiou a todos eles e a nós? Será que a majestade desses homens é maior que a Majestade do Filho de Deus?
    (Trecho do Sermão da Terceira Dominga do Advento, pregado em 1644, na Capela Real em Lisboa, pelo maior pregador da língua portuguesa, Antonio Vieira. O pregador tinha na ocasião 36 anos de idade. Adaptado e atualizado para o leitor do século 21).
Jefferson Magno Costa

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

JOÃO BUNYAN, UM PEREGRINO A CAMINHO DO CÉU

Jefferson Magno Costa    

    Oferecendo serviços de caldeireiro ambulante, lá vai João Bunyan pelas ruas de algumas cidades da Inglaterra. Corre o ano de 1648. Aquele rapaz de 25 anos, ex-soldado do Parlamento, não sabe o que o destino lhe reservou. Casado com a jovem que o conduziu aos caminhos da Fé, João Bunyan, enquanto conserta caldeiras, panelas e copos, prega o Evangelho a todos quanto estão ao alcance de sua voz.
    Anos antes, levara uma vida dissoluta em Harrowden, sua cidade natal. Seu lar era extremamente pobre. Contam alguns historiadores da época que o modo mais seguro de se localizar o adolescente Bunyan era dirigir-se ao local onde estivesse ocorrendo alguma briga, pois ele quase sempre estaria envolvido nela. Mas agora aquele moço, que entrara no exército do Parlamento para combater os insurretos durante a guerra civil, e que, apesar de sua coragem, fora dispensado da carreira das armas por gostar de perdoar os inimigos, caminhava pelo país consertando caldeiras e anunciando a salvação oferecida por Jesus Cristo.


PRESO POR PREGAR A PALAVRA DE DEUS
    Porém a Igreja Oficial, formalizada e secularizada pela monarquia, não podia tolerar essa concorrência do jovem pregador, e tratou de encarcerá-lo na prisão de Bedford. Durante 12 longos anos, João Bunyan viveu ali, numa cela escura e fria. Mas o calor e a luz que ele irradiou para o mundo através de seus livros tornaram-no um dos grandes servos de Deus imortalizados na memória da humanidade.
    A esposa e os amigos de Bunyan tudo fizeram para libertá-lo, mas as autoridades civis recusaram-se a fazê-lo, a menos que ele prometesse que nunca mais se dedicaria à pregação do Evangelho. Ao saber dessa condição, Bunyan afirmava sempre:
    - Se eu sair hoje do cárcere, começarei a pregar hoje mesmo, com a ajuda de Deus.
    E assim o tempo foi passando, e Bunyan foi se aprofundando cada vez mais na leitura das Sagradas Escrituras, a ponto de dominar grande parte de sua riqueza temática e se identificar plenamente com o estilo dos escritores sagrados. Disse ele, numa das cartas que escreveu à sua esposa: "Nunca havia sentido a presença de Deus ao meu lado de maneira tão poderosa como a estou sentindo agora, após o encarceramento. A leitura das Escrituras me fortalece tão profundamente, que chego a desejar, se lícito fosse, maiores provações para receber maiores consolações."


O LIVRO MAIS LIDO NA INGLATERRA DEPOIS DA BÍBLIA FOI ESCRITO EM UMA PRISÃO
     Foi no úmido cárcere da prisão de Bedford que Bunyan escreveu o livro que seria traduzido em mais de 100 idiomas, e cuja influência na cultura de língua inglesa só é superada pela Bíblia, equiparando-se, contudo, à obra de Shakespeare e a de Milton, os dois maiores escritores ingleses de todos os tempos. O Peregrino, ou A Viagem do Cristão à Cidade Celestial, título da obra-prima de João Bunyan, é hoje considerado um dos maiores clássicos já produzidos pelo cristianismo.
    Por ter sido escrito em linguagem simples, pura, cheia de expressões bíblicas e adequada a todos, O Peregrino conquistou um número de leitores maior do que jamais teve qualquer livro de outro grande escritor. Além de se constituir numa fiel descrição de como se comportava o povo inglês da época de Bunyan com relação à fé, O Peregrino relata, sobretudo, a viagem de Cristão, que sai da Cidade da Destruição para a Cidade Celestial. Vejamos que lições podemos tirar hoje deste livro.
    Durante sua acidentada mas interessantíssima viagem, Cristão depara-se com personagens alegóricos que o perturbam ou o ajudam. Passa por diversos lugares (todos têm uma real significação na vida do crente), como o Desfiladeiro do Desespero, o Vale da Humilhação, a Feira das Vaidades, o Rio da Morte, e outros, até chegar à Cidade Santa. No decorrer da narração, os personagens alegóricos tornam-se tão vivos, que temos a impressão de tê-los conhecido pessoalmente.
    A história origina-se de um sonho de Bunyan: "Caminhando pelo deserto deste mundo, parei num lugar onde havia uma caverna (a prisão de Bedford), deitando-me aí para descansar. Em breve adormeci e tive um sonho". Bunyan vê então um homem coberto de andrajos, de pé, tendo sobre os ombros um fardo pesado (os pecados) e lendo um livro (a Bíblia). À proporção que ia lendo, conscientizava-se de que era um pecador, e que precisava ser salvo. Enquanto lia, estremecia e chorava. Esse homem chama-se Cristão.


O PEREGRINO FOGE DA CIDADE QUE SERÁ DESTRUÍDA


    Ao chegar em casa, Cristão reúne a mulher e os filhos, e fá-los saber que, segundo aquele livro, a cidade onde habitam está para ser consumida pelo fogo. Imediatamente seus familiares concluem que ele enlouqueceu. Pedem que abandone aquelas idéias, mas nada conseguem. A única preocupação de Cristão é quanto ao que ele pode fazer para ser salvo. Não conseguindo convencer sua família a acompanhá-lo, Cristão parte sozinho em busca da salvação.
    Mas, por não saber ainda exatamente como agir, nem que direção tomar, pára, confuso, ainda nos arredores de sua cidade. Então aproxima-se dele um homem chamado Evangelista e, após ficar sabendo do que se passa, entrega-lhe um pergaminho onde está escrito: "Fugi da ira futura." Em seguida aponta-lhe um caminho, em cujo final brilha a luz (Salmo 119.105; 2 Pedro 1.19), que é a própria Palavra de Deus. Sob a recomendação de Evangelista: "Não a percas de vista; vai direto a ela, e encontrarás uma porta; bate, e lá te dirão o que hás de fazer", Cristão parte rumo à luz que brilha ao longe.
    A mulher e os filhos ainda tentam fazê-lo desistir, mas ele não lhes dá ouvidos, e segue o seu caminho, gritando: "Vida eterna! vida"eterna! vida eterna!" Alguns vizinhos correm atrás dele, e tentam trazê-lo para casa. Mas é inútil. Entre esses vizinhos há dois que insistem mais um pouco, e procuram saber o porquê daquela viagem. Chamam-se Obstinado e Flexível. Cristão fala-lhes sobre o pecado e a destruição que ameaça a todos os que não cumprirem a orientação daquele livro, e lhes mostra a Bíblia.
    Obstinado e Flexível desejam saber o que Cristão espera receber em troca de tudo o que o mundo oferece.
    Cristão explica-lhes:
    - Procuro uma herança incorruptível, "que não pode contaminar-se nem murchar", reservada com segurança no Céu, para ser "dada, no devido tempo, aos que a buscam diligentemente". Assim declara o meu livro; lede-o se desejais, e convencer-vos-eis da verdade.
    Obstinado resolve abandonar aquele homem que, certamente, enlouquecera. Chama Flexível, mas este está resolvido a acompanhar Cristão em sua viagem.
    - Enlouqueceste também? - pergunta-lhe Obstinado, e, sem mais delongas, abandona os dois "loucos", voltando para a Cidade da Destruição.


ATOLADOS NO PÂNTANO DA DESCONFIANÇA
    Cristão e Flexível seguem conversando sobre as promessas contidas no livro, que é lido em voz alta. Flexível escuta atentamente. Mas, entretidos que estavam na conversa e na leitura, não veem que se estão aproximando da beira de um pântano. Quando se apercebem, já estão dentro do atoleiro. É o Pântano da Desconfiança!
    Flexível volta-se para Cristão e diz:
    - É esta a felicidade de que me falaste? Se começamos assim nossa viagem, não posso crer que terá um bom fim. Se me vejo livre desta, garanto-te que dispensarei de bom grado a parte que poderia pertencer-me no tal celebrado país, e voltarei para minha cidade.
    E, fazendo um grande esforço, consegue alcançar a margem do pântano. Logo que se viu fora do atoleiro, nem pensou sequer em oferecer ajuda ao companheiro de viagem. Trata de correr na direção de sua casa, deixando Cristão a atolar-se cada vez mais. Mas eis que surge Auxílio, estende-lhe a mão e salva-o do Pântano da Desconfiança, dando-lhe alguns esclarecimentos acerca da significação daquele terrível lugar. Em seguida Cristão reinicia sua caminhada.


ENGANADO POR SÁBIO-SEGUNDO-O-MUNDO
    Conforme a explicação de Auxílio, aquele lugar chama-se Pântano da Desconfiança porque "quando o pecador desperta no conhecimento das suas culpas e de seu estado de perdição, surgem na sua alma dúvidas, temores, e apreensões desconsoladoras que se ajuntam nesse lugar". Caminhando sempre rumo à porta estreita, Cristão vê aproximar-se dele um homem chamado Sábio-Segundo-o-Mundo, que habita na cidade conhecida por Prudência Carnal. Os dois põem-se a conversar. Após ouvir sua história, Sábio-Segundo-o-Mundo diz que sabe como Cristão poderá livrar-se daquele fardo que leva às costas, sem precisar caminhar tanto. Indica-lhe a casa de um homem chamado Legalidade, que mora na aldeia da Moralidade, e tem um filho chamado Urbanidade.
    Cristão segue o conselho de Sábio-Segundo-o-Mundo, e dirige-se para a casa de Legalidade, mas ao se aproximar da montanha da Lei, esta parece-lhe tão elevada, que ele teme que ela caia sobre sua cabeça. Relâmpagos e chamas saem da montanha, ameaçando devorá-lo. Ele pára, aterrorizado.


EVANGELISTA REPREENDE CRISTÃO E O RECOLOCA NO CAMINHO CERTO


    Mas eis que surge novamente Evangelista. Após repreender Cristão e mostrar-lhe a gravidade do seu erro, ajuda-o a retornar ao caminho para a porta estreita, advertindo-o:
    - Toma cuidado em não te extraviares outra vez, para que não suceda pereceres no meio do caminho.
    Finalmente Cristão consegue chegar diante da almejada porta estreita, sobre a qual está escrito: "Batei e abrir-se-vos-á". Após bater por diversas vezes, aparece para atender-lhe um homem chamado Boa-Vontade, que pergunta a Cristão quem ele é, de onde vem e o que deseja.
    - Senhor, responde-lhe Cristão, sou um pobre pecador cansado e carregado. Venho da Cidade da Destruição, e dirijo-me ao monte Sião, a fim de escapar à ira vindoura. Disseram-me, honrado homem, que para seguir o meu caminho devo entrar por esta porta. Desejo saber se dás licença para que eu entre.
    Como resposta, Boa-Vontade puxa com força Cristão para dentro, e, diante do espanto deste, explica-lhe:
    - Há aqui perto um castelo, cujo governador é Belzebu, que, junto com seus soldados, está continuamente disparando setas contra aqueles que se aproximam desta porta, a fim de os matar antes que entrem.
    Após ouvir sua história, Boa-Vontade indica-lhe um caminho, e diz que é por ali que Cristão deverá seguir, pois por aquele caminho passaram os Patriarcas, os Profetas, Cristo e os Apóstolos. É um caminho sempre reto e estreito. Após despedir-se de Boa-Vontade, Cristão segue viagem, e logo chega à casa de Intérprete. Naquela casa recebe várias lições que serão úteis no decorrer de sua viagem.


CRISTÃO É INSTRUÍDO POR INTÉRPRETE
    Intérprete, pegando Cristão pela mão, conduze-o a uma sala cheia de poeira, pois nunca fora varrida. Quando um dos criados principia a varrê-la, levanta-se tal nuvem de poeira que quase sufoca Cristão. Porém uma jovem borrifa a sala com água, e pode-se então varrê-la sem dificuldade. Intérprete explica:
    - A sala representa um coração que nunca foi santificado pela doce graça do Evangelho. A poeira é o pecado original e a corrupção interior, que contaminam todos os homens. Quem principiou a varrê-la foi a Lei. O pó que quase te asfixiou são os pecados. Isto significa que a Lei, em lugar de limpar os corações, reaviva os pecados cada vez mais. A moça que borrifou a sala é o Evangelho. Quando o Evangelho entra no coração, com sua doce e preciosa influência, vence e subjuga o pecado, limpa a alma que nele crê e torna-a digna de ser habitada pelo Rei da Glória.
    Cristão é em seguida conduzido a um pequeno quarto onde se acham dois meninos sentados, Paixão e Paciência. O primeiro deseja possuir e desfrutar os bens do mundo, e nada almeja para a vida futura. O segundo almeja tão-somente os bens da vida eterna. Intérprete conclui o exemplo, dizendo:
    - As coisas que se veem são temporais, mas as que não se veem são eternas (2 Coríntios 4.18).
    Em outra sala há um fogo junto de uma parede, e alguém tenta apagá-lo, jogando água continuamente. Porém outra pessoa joga óleo dentro do fogo, e este não se apaga. Intérprete esclarece que o fogo representa a obra da graça no coração humano, e quem está tentando apagá-lo é Satanás, porém Jesus Cristo, com o óleo de sua graça, mantém acesa a obra iniciada no coração.

CRISTÃO VÊ-SE LIVRE DO SEU FARDO DE PECADOS AO PÉ DA CRUZ

    Após ver outras interessantes representações, Cristão despede-se de Intérprete e segue viagem, passando a caminhar por uma estrada protegida por dois altos muros chamados salvação. "Caminhava com muita dificuldade, por causa do fardo que levava às costas, mas o seu passo era rápido e seguro; vi-o aproximar-se de um pequeno monte onde se erguia uma cruz, junto à qual, um pouco mais abaixo, estava um sepulcro aberto. Ao chegar à cruz, soltou-se-lhe instantaneamente o fardo de sobre os ombros e, rolando, foi cair na sepultura, donde não tornará jamais a sair", conta João Bunyan.
    - Bendito seja Aquele que, com os seus sofrimentos, deu-me descanso, e, com a sua morte, concedeu-me a vida! - diz Cristão ao se ver livre do fardo de pecados.
    Continuando sua viagem à Cidade Eterna, Cristão depara-se com três homens chamados Simples, Preguiça e Presunção, que, com os pés ligados por cadeados, dormem profundamente. Cristão acorda-os e os adverte do perigo que correm:
    - Pois se passar por aqui o leão rugidor, caireis por certo nas suas terríveis garras (1 Pedro 5.8) - avisa Cristão.
    Eles não dão a mínima atenção, e continuam a dormir, enquanto Cristão segue estrada a fora.


CRISTÃO ENCONTRA OUTROS PERSONAGENS
    Subitamente aparecem-lhe Formalista e Hipocrisia, que dizem ser da terra da Vanglória, e dirigem-se ao Monte Sião em busca de louvores. Cristão os vira pular o muro que protege o caminho estreito, e pergunta-lhes se eles ignoram "que o que não entra pela porta do aprisco, mas por outra parte, é ladrão e salteador". Eles respondem :
    - O que importa é entrar no caminho; por onde se entra isso pouca importância tem. Tu entraste pela porta, nós pulamos o muro; mas o fato é que todos estamos no caminho, e não vemos nenhuma vantagem do teu lado.
    Cristão responde-lhes:
    - Vós sois salteadores. Estou certíssimo de que no fim da vossa viagem não sereis tidos na conta de homens de fé e de confiança. Entrastes sem a permissão do Senhor e saireis sem a sua misericórdia.
    Continuando sua viagem, Cristão depara-se com Timorato e Desconfiança, que abandonam, correndo, o caminho da Cidade Celestial, pois haviam encontrado dois leões. Quando Cristão já se está preparando para abandonar sua dificultosa viagem, desistindo de tudo, o porteiro do palácio, cujo nome era Vigilante, grita-lhe:
    - Tão poucas forças tens? Não temas os leões, porque se encontram acorrentados, e estão aí para provar a fé ou a incredulidade dos viajantes; passa pelo meio da estrada, e mal algum te acontecerá.


ENFRENTANDO O MONSTRO APOLIOM NO VALE DA HUMILHAÇÃO
    O Palácio Belo, que fora construído para servir de asilo e descanso para os viajantes, é habitado por Discrição, Prudência, Piedade e Caridade, que, após interrogarem Cristão, ceiam com ele. O quarto que lhe destinaram está situado no andar superior do palácio e chama-se Sala da Paz, e tem uma janela aberta para o Nascente.
    Pela manhã, após visitar algumas dependências do palácio, Cristão resolve partir. Antes, dão-lhe armas para que ele se defenda no caminho. Discrição, Piedade, Caridade e Prudência acompanham-no até se aproximarem do Vale da Humilhação, quando então se despedem. Cristão começa a descer, sozinho, o vale. Eis que de repente surge o terrível monstro Apoliom. Tem o corpo todo coberto de escamas, é dotado de asas de dragão, patas de urso e cabeça de leão. De sua boca saem fumaça e fogo. Trava-se entre eles um impressionante diálogo.
    Apoliom, que representa o próprio Satanás, pergunta porque Cristão abandonou os seus domínios. Cristão responde: "O teu serviço era tão pesado, e teu salário tão miserável, que mal dava para eu viver, porque o salário do pecado é a morte (Romanos 6.23)". Apoliom tenta então convencer Cristão a voltar a servi-lo, mas nada consegue. Após muito dialogarem, começam a lutar.
    - Vou arrancar-te a alma, diz Apoliom. Depois de longa batalha, Cristão fere Apoliom com sua espada de dois gumes - a Palavra de Deus -, e o inimigo foge.
    Após agradecer a Deus por aquela vitória, Cristão apressa-se a sair do Vale da Humilhação, mas eis que à sua frente se estende o Vale da Sombra da Morte. O caminho que conduz à Cidade Celestial passa por esse vale. Sobre ele pairam as tenebrosas nuvens da confusão, e a morte estende constantemente suas negras asas em toda a extensão do vale. O caminho está em trevas, e por isso Cristão caminha com dificuldade, ouvindo gritos e gemidos. Monstros e dragões rugem à sua volta.
    À margem direita daquele vale está o abismo profundo para o qual cegos têm guiado outros cegos no decorrer dos tempos. Cristão reconhece que a espada com que vencera Apoliom não lhe será suficiente para enfrentar todos os perigos que margeiam a estrada, e lança mão de outra arma, a oração. Através dela, pede a Deus: "Senhor, livra a minha alma!" Em alguns trechos da estrada, ele tem de caminhar cercado por terríveis chamas. "Caminharei na força do Senhor", diz Cristão, e avança cercado de demônios por todos os lados. Súbito, ouve alguém exclamar: "Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque tu estás comigo" (Salmo 23.4). Aquelas palavras enchem-no de esperança e paz.
    Quando a aurora começa a raiar sobre o vale, os monstros e demônios fogem para as sombras e abismos. Cristão exclama: "Ele torna a sombra da noite em manhã" (Amós 5.8). À luz do sol, o Peregrino distingue os perigos que o haviam cercado durante a noite. Laços, redes, obstáculos, precipícios e covas circundam o caminho. Espalhados pelo vale há ossos, sangue, cinzas e corpos de pessoas despedaçadas, que tinham tentado atravessar aquele vale sem a proteção de Deus.
    Cristão agradece a proteção que recebe¬ra do Senhor:
    - Bendita seja a mão misericordiosa a quem devo a minha conservação. Enquanto estive neste vale, cercaram-me os perigos das trevas, os inimigos, o inferno e o pecado. No meu caminho havia inúmeros laços, abismos, obstáculos de toda a espécie; mas graças sejam dadas a Jesus, que de tudo me livrou.
    Continuando sua viagem, Cristão encontra-se com Fiel, que também procede da Cidade da Destruição e dirige-se à Cidade Celestial. Ao aproximar-se dele, diz-lhe Cristão:
    - Honrado e querido irmão Fiel, estou contentíssimo por haver-te alcançado, e por Deus ter disposto de tal sorte os nossos espíritos a fim de caminharmos juntos nesta estrada tão agradável!
    E seguem conversando a respeito das experiências vividas até ali. Após reconhecerem que a misericórdia de Deus é a causa de eles estarem ainda vivos, Fiel conclui:
    - São muitas as tentações que encontram aqueles que obedecem à voz do Céu, e todas conforme as inclinações da carne. Quando umas são vencidas, logo outras nos assaltam. Devemos estar sempre alerta, e nos portarmos com valentia!
    Eis que lhes surge no caminho um bom homem chamado Loquaz, filho de Bem-Falante, e residente na rua das Boas Palavras. Após declarar que dirige-se também ao País Celestial, inicia uma interessante conversa com os dois peregrinos. Mas Cristão já o conhece, e na primeira oportunidade que lhe surge, adverte Fiel acerca dos perigos que ambos estão correndo na companhia daquele homem.
    Acerca de Loquaz, diz Cristão a Fiel:
    - Todas as companhias lhe agradam, e o que te afirmou há pouco é o mesmo que dirá quando estiver numa taberna. A conversão verdadeira não existe no seu coração, nem na sua casa, nem na sua vida; tudo o que tem reside na ponta da língua, e a religião dele consiste em apregoar tão-somente que a possui. Fala de "oração, de arrependimento, de fé e do novo nascimento, todavia nada disso sente; não faz mais do que falar. Paulo chama os grandes faladores de metal que soa e sino que tine (1 Coríntios 14.7). Coisas sem vida, isto é, sem a genuína fé e a verdadeira graça do Evangelho, que nunca poderão ter lugar no Reino dos céus, entre os filhos da vida, embora ao falarem produzam sons semelhantes aos da voz dos anjos.
    Fiel dispõe-se então a desmascarar Loquaz. Voltando-se para este, diz:
    - Conversemos agora. E, visto que deixaste a mim a escolha do assunto, proponho este: - Como se manifesta a graça salvadora de Deus, e quando existe ela no coração do homem?
    Loquaz prontamente responde:
    - Quereis dizer que vamos falar acerca do poder das coisas espirituais? O assunto é excelente, e estou bem disposto a responder desde já. Primeiro: quando a graça de Deus existe no coração, origina um grande clamor contra o pecado; segundo...
    - Mais devagar - diz Fiel. - Consideres uma coisa de cada vez. Parece-me que falaríeis mais acertadamente, dizendo que a graça de Deus se manifesta em inclinar a alma a aborrecer o pecado.
    - E que diferença há entre clamar contra o pecado e odiá-lo?
    - Muitíssima. Podemos, por decência, clamar contra o pecado, até do púlpito e, não obstante, tolerá-lo em nosso coração e em nossas casas. Os clamores de algumas pessoas contra o pecado são como os da mãe contra o filho a quem repreende, mas que logo beija e acaricia.
    - Parece-me que quereis apanhar-me nos meus próprios argumentos - observou Loquaz.
    - Não - responde Fiel, - apenas desejo colocar as coisas no seu devido lugar. Dizei agora qual é o segundo ponto com que demonstrais a existência da obra da graça no coração.
    - Tendo um grande conhecimento dos mistérios evangélicos - responde Loquaz.
    - Deveis pôr esse em primeiro lugar, diz Fiel, mas, em primeiro ou em segundo, é sempre falso, porque podemos obter facilmente muitos conhecimentos evangélicos e não termos a obra da graça nas nossas almas. Além do mais, é possível um indivíduo possuir toda a ciência, e, contudo, não ser coisa alguma. O saber agrada efetivamente aos faladores e aos jactanciosos, mas Deus compraz-se com o fazer. Não quero com isto dizer que o coração possa ser bom sem o conhecimento, porque sem ele nada vale. Logo, há dois conhecimentos distintos: aquele que trata de investigar as coisas, e aquele que é acompanhado de graça, fé e amor, que leva o homem a praticar a vontade de Deus. O primeiro satisfaz ao falador; todavia, o verdadeiro cristão só se satisfaz com o segundo.
    - Estais mais uma vez criticando as minhas palavras, e nada mais. Não vejo a possibilidade de chegarmos a um acordo. Passe muito bem.
    Após se separarem de Loquaz, Cristão e Fiel notam que alguém os segue. Esperam que se aproxime, e, para surpresa e alegria de ambos, veem que se trata de Evangelista. Após saudarem-se e abraçarem-se afetuosamente, Evangelista fala-lhes:
    - Meus filhos, tendes ouvido, na palavra de verdade do Evangelho, que, enfrentando muitas tribulações, entramos no reino de Deus, e que em cada cidade nos esperam prisões e perseguições. Deveis, portanto, esperar que no vosso caminho se vos deparem algumas destas coisas... Tende por certo que um de vós, ou ambos, selará o seu testemunho com o próprio sangue. Conservai-vos, porém, fiéis até a morte, e o Rei dar-vos-á a coroa da vida.
    Ao seguirem viagem, chegam a uma cidade chamada Vaidade; ali há uma feira, onde tudo é vendido: casas, terras, empregos, títulos, concupiscências, ouro, prata, pedras preciosas, adultérios, mortes, falsos testemunhos e muitas outras coisas. É conhecida como Feira da Vaidade. O caminho que conduz à Cidade Celestial passa pelo centro dessa cidade.
    O príncipe da cidade chama-se Belzebu. Várias razões levam os comerciantes a se incomodar com a presença dos peregrinos. Uma delas é que seus vestidos são muito diferentes dos que se vendem na feira, e a multidão começa a cercá-los para os ver. Uns dizem que eles são idiotas, outros que são loucos, e outros que são estrangeiros: "Porque tenho para mim, que Deus a nós, apóstolos, nos pôs por últimos, como condenados à morte; pois somos feitos espetáculo ao mundo, aos anjos, e aos homens" (1 Coríntios 4.9).
    Os comerciantes não entendem o modo de falar dos peregrinos, pois estes falam o idioma de Canaã, e a população daquela cidade fala a linguagem do mundo: "Mas falamos a sabedoria de Deus, oculta em mistério, a qual Deus ordenou antes dos séculos para nossa glória; a qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu, porque, se a conhecessem, nunca crucificariam o Senhor da glória" (1 Coríntios 2.7,8).
    O que mais incomoda os mercadores é o fato de os peregrinos não darem nenhuma importância às mercadorias que vendem; nem sequer olham para elas. Se alguém lhes oferece alguma coisa, eles exclamam: "Desvia os meus olhos de contemplarem a vaidade" (Salmo 119.37), e desviam o olhar para cima. Um dos mercadores pergunta-lhes furiosamente:
    - Que quereis comprar?
    - Compramos a verdade (Provérbios 23.23).
    Estas respostas despertam a ira no coração de muitos, e eles passam a insultar os peregrinos. Há grande tumulto na feira, os peregrinos são presos e interrogados.
    Perguntam-lhes de onde vêm, para onde vão, e que fazem ali em trajes estranhos. Eles respondem:
    - Somos peregrinos no mundo, e dirigimo-nos à nossa pátria, que é a Jerusalém Celestial.
    O Tribunal, contudo, declara-os lou¬cos, conclui que eles vieram expressamente para perturbar a ordem pública. Resolvem açoitá-los, atiram lama sobre eles e prendem-nos numa gaiola para servirem de espetáculo a toda a gente da feira. Depois, são levados novamente a julgamento. O juiz do processo chama-se Ódio-ao-Bem. Os peregrinos estão sendo acusados de ser inimigos e perturbadores do comércio, de terem provocado desordem e conflitos na cidade, e de haverem criado um partido em favor das suas perigosíssimas opiniões, desacatando completamente as leis do príncipe reinante, Belzebu.
    Contra os peregrinos há três testemunhas: Inveja, Superstição e Adulação. Por ter solicitado a palavra para se defender, e, durante a sua defesa, ter desafiado "Belzebu e todos os seus sequazes", Fiel passa a ser visado em particular e violentamente acusado por todos. Adulação diz que Fiel não respeita nem o príncipe, nem o povo, nem a lei, nem os costumes.
     - Ele tem injuriado o nosso excelso príncipe Belzebu, e falado com desprezo dos seus ilustres amigos, como o senhor Homem-Velho, o senhor Prazer-Carnal, o senhor Comodista, o respeitável ancião senhor Luxúria, o cavalheiro Avidez, e muitos outros da nossa nobreza.
    Os homens que compunham o júri não podiam ter nomes mais "ilustres": Cegueira, Malícia, Injustiça, Lascívia, Libertinagem, Temeridade, Altivez, Malevolência, Mentira, Crueldade, Ódio-à-Luz e Implacável. Então o juiz, voltando-se para o júri, disse:
    - Senhores jurados, vede que estes homens provocaram um grande tumulto na nossa cidade. Pertence-vos condená-los ou absolvê-los.


A MORTE DE FIEL
    Fiel é condenado à morte. Esbofeteam-no, açoitam-no, apedrejam-no, ferem-no com espadas e lançam-no ao fogo, reduzindo-o a cinzas. O castigo de Cristão é adiado. Levam-no à prisão, onde ele fica por algum tempo; até que, um dia, Deus providencia a sua liberdade e ele pode seguir o seu caminho.
    Cristão sai da cidade acompanhado de Esperança, que também se dirige à Cidade Celestial. No trajeto, encontram-se com Interesse-Próprio, a quem perguntam de onde vem e para onde vai.
    - Venho da cidade das Boas-Palavras, e dirijo-me à Cidade Celestial.


OS HABITANTES DA CIDADE DE BOAS-PALAVRAS
    Cristão pede que ele lhes fale sobre seus parentes e os costumes dos habitantes da sua cidade.
    - Meus parentes são quase todos antigos habitantes da cidade. O mais ilustre deles é o senhor Vira-Casaca. Há também os senhores Afago, Duas-Caras, Qualquer-Coisa e o senhor Língua-Dobre, que é irmão da minha mãe. Minha esposa é uma dama muito virtuosa, filha de uma senhora também virtuosíssima, a dona Imposto-ra. Somos muito zelosos pela religião, principalmente quando esta se nos apresenta com sapatos de prata; e gostamos muito de a acompanhar em público, à luz do sol, quando todos a veem e aplaudem.
    Quanto a este último ponto, Cristão observou:
    - Se quereis acompanhar-nos tereis de remar contra o vento e contra a maré, o que, segundo vejo, não está no vosso credo. Precisais reconhecer a religião tanto nos seus trajes vultuosos como nos seus andrajos, e acompanhá-la tanto quando sofre perseguições como quando passeia pelas ruas com geral aplauso.
    Interesse-Próprio não concorda com Cristão, e diz que os acompanhará da maneira que ele bem achar e entender.
    - Nem mais um passo! - diz Cristão. -Se não vos conformais com o que nós fazemos, deixai-nos!
    Após se separarem, três amigos de Inte¬resse-Próprio passam a segui-lo. São eles Apego-ao-Mundo, Amor-ao-Dinheiro e Avareza. Os quatro são alunos do senhor Cobiça, que mora na cidade do Amor-ao-Ganho. Esse "sábio" professor ensinara-lhes a arte de adquirir riquezas, tanto pela violência, como pela fraude, pela adulação e pela mentira, utilizando o nome da religião.
    Os quatro homens conversam entre si, e resolvem propor um problema a Cristão e a Esperança. Após os chamarem e os obrigarem a parar e esperar, Apego-ao-Mundo propõe o seguinte problema:
    - Suponhamos que um pastor de almas, ou um comerciante, a quem se apresentasse a ocasião de possuir as boas coisas desta vida, não pudesse alcançá-las de modo algum sem que se fizesse, pelo menos na aparência, extraordinariamente zeloso em algum ponto da religião, com que até então se não houvesse importado muito: não lhe será permitido empregar os meios necessários para obter o seu objetivo, sem por isso deixar de ser homem honrado?
    Cristão responde nos seguintes termos: - Não só eu, mas qualquer novato na fé poderá facilmente responder a mil perguntas como essa; porque se é ilícito seguir a Cristo por causa dos pães, como se vê no Evangelho de João 6.26: "Na verdade, na verdade vos digo que me buscais, não pelos sinais que vistes, mas porque comestes do pão e vos saciastes", muito mais abominável será servir-se de Cristo e da religião como meio para conseguir e gozar as coisas do mundo! Só os gentios, os hipócritas, os demônios e os feiticeiros poderão aceitar semelhante opinião. Os fariseus hipócritas foram religiosos deste quilate. Grandes orações eram entre eles o pretexto para devorarem a casa das viúvas. A religião de Judas era também assim, e igualmente a de Simão, o Mago, porque queria possuir o batismo com o Espírito Santo para ganhar dinheiro.
    Diante desta resposta, os falsos peregrinos ficam sem saber o que responder. Cristão diz para Esperança:
    - Se estes homens não podem se defender ante a sentença do homem, o que será quando se apresentarem no tribunal de Deus?
    Cristão e Esperança prosseguem sua viagem até chegarem a uma bela planície chamada Alívio. Porém, do outro lado da planície existe uma colina chamada Lucro. Ali há uma mina de prata. Muitos viajantes, deixando a estrada que conduz à Cidade Celestial, se dirigem à mina, convidados por Demas, o guardião daquele tesouro. Porém, ao se aproximarem demasiadamente de sua entrada, o terreno, que é falso, cede e os precipita no abismo.
    Os dois peregrinos são convidados por Demas para conhecerem a mina, porém Cristão diz a Demas que já o conhece, e não cairá em sua armadilha, pois bem sabe que ele é neto de Geazi e filho de Judas. E prossegue sua viagem em companhia de Esperança. Mas em seguida Interesse-Próprio e seus companheiros atendem o chamado de Demas e se acercam dele. Nunca mais Cristão e Esperança terão notícias daqueles homens.
    Após caminharem por algum tempo, descansam à margem de um rio onde crescem árvores frondosas que produzem toda qualidade de frutos. Ali adormecem. Ao acordarem, comem dos frutos, bebem da água e prosseguem a viagem. Margeando o caminho há um prado, conhecido como "Prado do caminho errado". Por ignorarem o seu nome, os peregrinos passam a caminhar por ele, pois se mostra muito suave aos seus pés.
   Mais adiante, avistam um homem que segue pelo mesmo atalho. Este homem chama-se Vã-Confiança. Perguntam-lhe aonde conduz aquela vereda.
    - À porta da Cidade Celestial, responde o homem.
    - Vê? Não te dizia eu? - exclamou Cristão para o seu companheiro Esperança. -Agora podemos estar certos de que vamos bem.
    E continuam a viagem. Vã-Confiança ia à frente deles. Subitamente a noite os surpreende, escurecendo totalmente o caminho, a ponto de os peregrinos não poderem distinguir o homem que vai adiante. Quando menos esperam, ouvem um grito. O homem caíra numa cova profunda, mandada abrir pelo príncipe daquela região. Cristão e Esperança perguntam em altas vozes ao homem o que lhe acontecera, mas em resposta só obtêm um fraco gemido. O homem está irremediavelmente perdido!
    Começa então a cair uma violenta tempestade, com trovões e relâmpagos a riscarem o céu. Amedrontados e tremendo de frio, os dois peregrinos resolvem voltar, mas as trevas são tão densas, e as águas têm crescido tanto, que eles temem afogar-se ou cair em algum abismo. Para a sua felicidade, encontram um pequeno abrigo, onde se assentam e ficam a esperar o nascer do sol. Ali, adormecem de cansaço.


PRISIONEIROS NO CASTELO DA DÚVIDA
    Próximo ao lugar onde eles adormeceram ergue-se o Castelo da Dúvida, habitado pelo gigante Desespero e sua mulher Desconfiança. O gigante, que havia madrugado para ver os efeitos da tempestade sobre suas terras, depara-se, surpreso, com Cristão e Esperança, que ainda dormem. Acorda-os, e furiosamente pergunta-lhes de onde são e o que querem ali.
    - Somos peregrinos, estamos nos dirigindo à Cidade Celestial, mas perdemos o caminho.
    - Miseráveis! - exclama o gigante. -Quem vos autorizou a invadir os meus domínios? Minhas sementeiras foram pisadas por vós; portanto, sois meus prisioneiros.
    O gigante conduze-os ao castelo e mete-os numa prisão úmida e escura. Seguindo o conselho de sua esposa Desconfiança, passa a tratá-los como a cães; chicotea-os brutalmente, deixa-os sem comida e sem água, e aconselha-os a porem fim à própria existência. Depois leva-os ao pátio do castelo, para mostrar-lhes as ossadas e as caveiras dos que haviam sido despedaçados pelas suas mãos. Sendo novamente jogados à prisão, os dois peregrinos caem ao chão, tão fracos e desanimados, que mal podem respirar. A noite já vai alta quando eles começam a orar, e continuam em oração até o romper da alvorada. Pouco antes do amanhecer, Cristão exclama:
    - Que louco e que néscio eu sou em encontrar-me aqui neste calabouço, quando podia estar gozando a liberdade! Tenho no peito uma chave chamada Promessa, que poderá abrir todas as fechaduras do Castelo da Dúvida.
    Empunhando a chave da Promessa, Cristão pode abrir a fechadura da porta da prisão, bem como as demais portas e o portão de ferro da fortaleza. Ao abrir este último, o gigante Desespero acorda e quase os torna a prender, mas um ataque de fúria o paralisa por completo.
    Os peregrinos correm até alcançar novamente a estrada que conduz à Cidade Celestial. No início do caminho que leva ao castelo do gigante Desespero, resolvem colocar um aviso com as seguintes palavras: "Este caminho conduz ao Castelo da Dúvida, propriedade do gigante Desespero, que menospreza o Rei do País Celestial e busca destruir os seus santos peregrinos".


NAS MONTANHAS DAS DELÍCIAS
     Após caminharem por algum tempo, os peregrinos chegam às montanhas das Delícias, onde contemplam o jardim, a vinha e as fontes; bebem, lavam-se e comem livremente. São hospedados por pastores, que lhes revela ser aquelas montanhas propriedade do Rei dos reis.
    - O Senhor destas montanhas sempre nos tem ensinado o dever da hospitalidade; portanto, está à vossa disposição tudo o que há de bom - dizem-lhes os pastores, que se chamam Sabedoria, Experiência, Vigilância e Sinceridade.
    Próximo daquelas montanhas há um monte chamado Erro, cuja vertente dá para um abismo no lado oposto. Porém, vizinha a este monte há uma montanha cujo nome é Cautela.
    Ao se despedirem dos pastores, estes avisam os peregrinos que se previnam contra o Adulador e que tenham o cuidado de não adormecerem no terreno encantado. Desejam-lhes boa viagem na companhia do Senhor.
    No decorrer da viagem, os peregrinos encontram-se com Ignorância, que diz estar a caminho da Cidade Celestial, mas não entrou pela porta que está no princípio da estrada; é, portanto, da classe "ladrão e salteador". Cristão e Esperança veem um homem caminhando em sentido contrário à Cidade Celestial. Chama-se Volta-Atrás, e está sendo conduzido por sete demônios que o amarraram com grossas cordas. Em suas costas há um letreiro com estas palavras: "Cristão licencioso, maldito e apóstata".
    Ao se depararem com uma bifurcação da estrada, param indecisos, sem saber que direção tomar. Mas eis que surge um homem de cor escura, mas coberto de vestes claras, e pergunta aos peregrinos porque eles estão parados ali. Eles respondem:
    - Vamos para a Cidade Celestial, mas não sabemos que caminho devemos tomar.
    - Vinde comigo que eu também me dirijo para essa cidade - diz-lhes o desconhecido.
    Os peregrinos passam prontamente a seguir aquele homem, que se chama Adulador. Ele os conduz na direção oposta à cidade almejada, até fazê-los cair presos numa rede, e os abandona ali. Eles se debatem na rede até serem socorridos por um ser Resplandecente, que os castiga severamente por eles terem deixado o bom caminho, mas os reconduz à verdadeira estrada.
    Ao reiniciarem a caminhada, encontram-se com Ateu, que havia abandonado o caminho celestial; passam pela Terra Encantada, onde muitos viajantes haviam adormecido para nunca mais acordarem; tornam a se encontrar com Ignorância, e concluem que ele é cristão só nas atitudes que assume externamente.
    Finalmente os dois peregrinos, felizes e rejubilantes, vêem que estão cada vez mais próximos da Cidade Celestial, pois o número de Seres Resplandecentes a transitar pela estrada é cada vez maior. Estão, portanto, perto dos limites do Céu. À beira da estrada há excelentes vinhas e deliciosos jardins. Eis que de repente surgem dois seres com vestidos reluzentes, cujos rostos resplandecem como a luz. Dirigem-se aos dois peregrinos e lhes dizem que para chegarem à Cidade Celestial é necessário atravessarem o rio da Morte que se estende à frente deles. O rio é bastante profundo, e não há qualquer ponte por onde se possa passar.
    - Tendes de atravessá-lo, ou não conseguireis chegar à porta, dizem-lhes os dois seres.
    - Não há outro caminho? - pergunta Cristão.
    - Há, respondem os Seres Resplandecentes. Mas desde a fundação do mundo, só a dois homens -''Enoque e Elias" - foi permitido passar por cima do rio, mas isto a mais ninguém se permitirá até que se cumpra a vinda do Senhor.


ATRAVESSANDO O RIO DA MORTE
    Os dois peregrinos resolvem entrar no rio. Mas subitamente Cristão começa a submergir-se nas águas. E começa a bradar à Esperança:
    - Afundo-me nestas águas, passam por mim todas as ondas, rodeam-me as dores da morte, cai sobre mim grande horror e obscuridade, de maneira que nada vejo. Ah! meu amigo, não verei a terra que mana leite e mel!
     - Tem coragem, irmão, responde-lhe Esperança. Eu alcancei o fundo do rio, e acho-o seguro. Confia em Jesus Cristo, e lembra-te dos doces refrigérios que Ele sempre nos tem dado.
    Ao ouvir estas palavras de Esperança, Cristão exclama em alta voz:
    - Sim, já o estou vendo, e ouvindo sua voz dizer-me: "Quando passares pelas águas, estarei contigo, quando pelos rios, eles não te submergirão" (Isaías 43.2).
    Assim avançam, encorajando-se reciprocamente, até alcançarem a outra margem do rio. Grande foi a consolação dos peregrinos ao verem que os dois Seres Resplandecentes os esperavam. Após os saudarem, os seres celestes dizem:
- Somos espíritos ministradores, enviados para servir àqueles que herdam a salvação.
     Após deixarem suas vestes mortais, cheios de consolação por haverem atravessado o rio e por terem a seu serviço tão gloriosos companheiros, os peregrinos passam a subir uma grande montanha, conduzidos pelos braços dos Seres Resplandecentes. Transpõem as nuvens e as regiões da atmosfera, e percorrem velozmente o espaço infinito rumo à Jerusalém Celestial. Enquanto se aproximam das regiões celestes, os Seres Resplandecentes vão dizendo:


CAMINHANDO COM OS ANJOS RUMO À CIDADE DE DEUS
    - Já estais perto do Paraíso de Deus, onde vereis a Árvore da Vida e comereis do seu fruto imarcessível. Recebereis, quando entrardes, vestidos brancos, e o vosso trato e conversação com o Rei durará por toda a eternidade. Não tomareis a ver ali o que vistes e sentistes na região inferior da Terra, isto é, dor, enfermidade, aflições e morte, porque tudo isso pertence ao passado (Isaías 65.16,17). Ides juntar-vos com Abraão, Isaque, Jacó, e com os profetas, a quem Deus livrou do mal futuro, e descansam após haverem andado em justiça. Ides receber consolação por todos os vossos trabalhos, e gozo por toda a vossa tristeza. Recolhereis o que semeastes, isto é, o fruto de todas as vossas orações, lágrimas e sofrimentos que pelo Rei passaste no caminho da vossa peregrinação.
    Voando velozmente, eles vão se aproximando cada vez mais da cidade cujo brilho é superior ao do sol, e em cujas ruas calçadas a ouro, passeia um grande número de salvos, com coroas na cabeça, palmas e harpas de ouro nas mãos, entoando louvores.
    Os Seres Resplandecentes continuam a enumerar as bênçãos que aguardam Cristão e Esperança.
    - Os vossos olhos regozijar-se-ão contemplando o Altíssimo, e os vossos ouvidos deleitar-se-ão com a doce voz do Pai Eterno. Ser-vos-ão dadas vestes de glória e majestade, e quando o Rei da Glória voltar à terra, nas nuvens, ao som da trombeta, como sobre as asas do vento, vireis com Ele. Quando se assentar no trono do julgamento, assentar-vos-eis a seu lado; quando pronunciar a sentença contra os que obraram iniquidade, sejam anjos ou homens, tereis também voz nesse julgamento; e, quando voltar para a Cidade Celestial, regressareis com Ele ao som da trombeta e ficareis com Ele para sempre.
    Ao se aproximarem da porta da entrada da Jerusalém eterna, uma multidão das hostes celestiais sai ao encontro deles, perguntando:


ENTRANDO PELAS PORTAS DA JERUSALÉM CELESTIAL
    - Quem são estes e de onde vêm?
    - São homens que amaram o Senhor Jesus Cristo quando estavam no mundo, e tudo deixaram pelo seu santo nome. Agora eles poderão contemplar o seu Redentor face a face, com grande e indescritível alegria - respondem os Seres Resplandecentes.
    A multidão, com voz de júbilo, exclama: "Bem-aventurados aqueles que são chamados à ceia das bodas do Cordeiro" (Apocalipse 19.9).
    Sobre a porta da cidade estão gravadas com letras de ouro as seguintes palavras: "Bem-aventurados aqueles que lavam as suas vestiduras no sangue do Cordeiro, para que tenham direito à Árvore da Vida, e possam entrar na cidade pelas portas" (Apocalipse 22.14).
    Os peregrinos recebem então vestidos que resplandecem como o ouro; recebem também harpas e coroas, e passam a encher os espaços com suas melodias, por toda a infinita Jerusalém Celestial.
Jefferson Magno Costa

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