Jefferson Magno Costa
Por que será que Jacó, após ter trabalhado sete anos para receber Raquel como esposa, mas em seu lugar recebeu Lia das mãos daquela raposa velha chamada Labão, aceitou trabalhar mais sete anos pela filha mais nova do seu tio? Por amor a Raquel, seria a resposta mais plausível.
O relato completo dessa sublime história de amor está registrado nos 30 primeiros versículos do capítulo 29 de Gênesis. O fato é que quando Jacó viu Raquel, foi amor à primeira vista. Ela era “formosa de porte e de semblante” (ARA).
A beleza da moça foi um fator decisivo para o nascimento do amor que o primo sentiu pela prima durante toda a sua vida.
Curiosamente, as duas edições bíblicas mais lidas em língua portuguesa, a Almeida Revista e Corrigida e a Almeida Revista e Atualizada, usam dois termos de sentido antagônico para nos informar algo sobre os olhos de Lia. A filha mais velha de Labão tinha “os olhos baços” (ARA), ou “tenros” (ARC).
Se eram “baços”, podemos crer que eram de visão fraca, o que talvez levasse a moça a semicerrá-los para enxergar melhor. Ou talvez ela sofresse de uma doença muito comum naquela época: conjuntivite crônica. Porém, se eram “tenros”, eram “brandos, ternos, delicados”, segundo definição do Dicionário Houaiss.
Acima de qualquer discussão de beleza ou feiúra, Lia não era nenhuma mulher para se jogar fora. Jacó poderia muito bem ter-se dado por satisfeito quando a recebeu como esposa, pois ela demonstrou ser uma excelente companheira, uma mulher amorosa, submissa ao marido e temente a Deus.
Suportou pacientemente as demonstrações de preferência de Jacó pela esposa mais nova (e certamente, mais bonita). Porém, Deus tomou o partido da desprezada Lia tornando-a fértil, enquanto a preferida Raquel chorou muitos anos na esterilidade (Gênesis 29.31). Lia deu a Jacó seis filhos e uma filha.
Dois desses filhos, Judá e Levi, foram pais de reis e sacerdotes de Israel, e da descendência de Judá nasceu Jesus.
Como o assunto que estamos tratando aqui é o da beleza, vejamos se os antigos gregos, que se tornaram mundialmente famosos por suas reflexões filosóficas sobre a beleza, podem nos ensinar algo de relevante e útil sobre o assunto.
A história registra que o mais importante diálogo que os gregos já tiveram sobre a beleza, ocorreu durante um banquete em que o filósofo Sócrates esteve presente. Esse debate foi imortalizado na obra do filósofo Platão, discípulo de Sócrates, e publicado com o nome de O Banquete.
Bom seria que viajássemos no túnel do tempo até a Atenas de Socrates, e participássemos desse banquete. É o que vamos fazer agora.
Portanto, deixemos Jacó e sua abençoada família naquela bíblica cidadezinha da Mesopotâmia, Padã-Harã, e entremos na capital cultural da Grécia, Atenas.
Perguntemos às pessoas que passam por nós com ar distraído e dando a impressão de que já estão bêbadas, se sabem onde é a casa de Agaton. Alguém nos aponta uma direção. Caminhemos para lá.
Como sei que, no tempo histórico em que estamos, banquete de grego quase sempre termina em cenas impróprias para um cristão, sugiro que não batamos à porta, e sim que saquemos as nossas Bíblias, recuemos alguns passos, corramos e entremos precipitadamente porta à dentro.
“PREPARAS UMA MESA PERANTE MIM NA PRESENÇA DOS MEUS INIMIGOS”
Prezado leitor: Esqueci de lhe dizer que quem estava invadindo conosco aquele banquete pagão era um grande amigo nosso, uma das maiores glórias da teologia e da filosofia cristãs.
Após converter-se ao cristianismo em 386 d.C., nosso amigo passou a ser considerado o segundo ou o terceiro maior apologista da fé cristã. Ele era capaz de citar de cor quase toda a Bíblia.
Estou falando de Aurélio Agostinho. Eu sabia que por ele estar conosco dentro de uma sala onde o próprio Sócrates se encontrava, “o bicho ia pegar”.
Ali também estavam presentes Fedro, retórico; Ágaton, poeta e dono da festa; Aristófanes, comediógrafo; Aristodemo, discípulo de Sócrates; Erixímaco, médico; Pausânias, artista plástico, e o militar Alcibíades.
Entre os convidados, nenhuma mulher. Esse fato deixou-me com um pé atrás, e levou Agostinho a erguer a sobrancelha esquerda.
A presença de mulheres em banquetes gregos no tempo de Sócrates era raríssima. Enquanto os homens compareciam a essas reuniões para comer, beber, cantar e filosofar, as mulheres ficavam trancafiadas em casa... falando mal deles, certamente.
Para nos fazer companhia, eu também poderia ter convidado o ilustre teólogo e filósofo judeu-português Iehudad Abravanel, nascido em Lisboa em 1465, que passou a ser conhecido entre os demais filósofos e teólogos da Europa como Leão Hebreu.
Na tentativa de estabelecer uma concordância entre a Bíblia e a filosofia de Platão e Aristóteles, Leão Hebreu escreveu os sublimes Diálogos de Amor, que estaremos publicando em breve.
Mas Agostinho era mais do que suficiente para nos acompanhar como representante da fé cristã. Aquele homem alto, espadaúdo, de braços musculosos, pele morena e cabelos crespos, cujas avantajadas narinas davam a impressão de que, a qualquer momento, iriam soltar labaredas de fogo e cinzas incandescentes, fazia-me lembrar aquele anjo do Senhor que, em um único ataque, aniquilou 185 mil inimigos assírios (2Reis 19.35).
Fisicamente, aqueles gregos, com suas túnicas brancas e rosadas, não eram páreo para nós. Porém, intelectualmente... é o que iríamos ver.
Ao transpormos a porta, Aristófanes ou Erixímaco, não lembro qual dos dois, perguntou a Agostinho se ele também estava ali para beber em honra a Dionísio (o Baco dos romanos), o deus do vinho e da embriaguês.
Imediatamente, Agostinho respondeu usando uma de suas mais lindas descrições do cristão em busca do nosso Deus:
“Quando eu busco a meu Deus, não busco forma de corpo, nem formosura transitória, nem brancura de luz, nem melodia de canto, nem perfume de flores, nem unguentos aromáticos, nem mel, nem maná deleitável ao paladar, nem outra coisa que possa ser tocada ou abraçada. Nada disso busco, quando busco a meu Deus. Porém, acima de tudo isso, quando busco a meu Deus, busco uma luz sobre toda luz, que os olhos não veem; e uma voz sobre toda voz, que os ouvidos não ouvem; e um perfume sobre todo perfume, que o nariz não sente; e uma doçura sobre toda doçura, que o paladar não conhece; e um abraço sobre todos os abraços, que o tato não alcança. Porque esta luz resplandece onde não há lugar, e esta voz soa onde o ar não a leva, e este perfume é sentido onde o vento não derrama, e este sabor deleita onde não há paladar, e este abraço é recebido onde nunca será desfeito”.
Percebi imediatamente que o bravo e douto Agostinho entrara ali para higienizar e moralizar aquele banquete pagão. E sobretudo para "cristianizar" o tema que seria tratado no banquete. A beleza seria discutida sim, mas a partir de sua fonte principal e maior, o Deus dos cristãos.
Agostinho e eu poderíamos muito bem olhar para Jesus, e exaltando-o como Soberano entre vivos e mortos, entre todos os deuses pagãos e diante daqueles ilustres debatedores gregos, dizer: "Senhor, todas as minhas fontes estão em ti", Salmo 87.7.
AGOSTINHO E SÓCRATES FRENTE A FRENTE NO BANQUETE
Ao ouvirem aquela sublime descrição que o teólogo africano Aurélio Agostinho apresentou sobre a busca que a alma cristã empreende para encontrar o seu Deus, todos aqueles homens permaneceram calados por algum tempo, demonstrando estar possuídos dos sentimentos mais diversos.
Enquanto olhava diretamente para Sócrates a fim de ver qual seria sua reação, Aristodemo tinha o ar de espanto. Fedro permanecia de cabeça baixa, visivelmente impactado pelo que ouvira. O comediógrafo Aristófanes, como era de se esperar, esboçava um sorriso de ironia. Abanando-se nervosamente com um leque, o artista plástico Pausânias não escondia sua admiração.
Enquanto cochichava algo no ouvido de um dos seus servos, Ágaton deixava bem claro que desejava saber quem eram aqueles dois invasores de sua mansão e do seu banquete (no caso, eu e Agostinho), por que estávamos ali, e o que queríamos.
O médico Erixímaco mantinha-se impassível, olhando fixamente para nós, tentando descobrir se já nos conhecia.
Visivelmente bêbado, e com uma taça de vinho na mão, Alcebíades era o único que parecia não ter nenhum interesse por nós.
Foi então que Sócrates levantou-se do divã onde já estava acomodado para saborear as iguarias e a bebida que lhe seriam servidas, deu alguns passos em nossa direção e, dirigindo-se mais ao meu amigo Aurélio Agostinho do que a mim, disse:
— Ilustres e desconhecidos visitantes, em nome de todos os presentes, e em especial em nome de nosso amigo e anfitrião Ágaton, dou-lhes as boas-vindas. Alguns minutos antes de os senhores entrarem nesta sala, havia sido proposto que cada um de nós faria um discurso sobre a beleza, mas vejo que teremos de desviar por alguns minutos o nosso assunto para um tema que também nos é especialmente interessante, pois está intimamente ligado à beleza, e é a origem dela: Deus.
— Minhas reflexões —continuou Sócrates — têm-me levado a algumas conclusões sobre esse ser que está acima de todos nós. Querem ouvi-las?
Amigo leitor, na preocupação de preparar a sua mente e o seu espírito para esse momento inigualável em que o mais arguto filósofo pagão conversará sobre Deus com o mais genial e perspicaz teólogo cristão (depois do apóstolo Paulo, é claro), cabe informar que, de todos os homens que falaram sobre Deus antes da Era Cristã, o mais profundo dentre eles foi Sócrates. A prova disto está nos Diálogos do seu discípulo Platão.
Sócrates mesmo não deixou nada escrito. Tudo o que ele ensinou foi imortalizado nas obras de Platão.
O grande pregador e teólogo francês Bossuet chamava-o de “divino”, e outros teólogos chegaram a compará-lo a Moisés. “Era Moisés meditando e filosofando em grego”, observou genialmente certa vez o pregador britânico Charles Spurgeon.
Coube ao esplendoroso teólogo e pregador francês do século XIII, Bernardo de Clarivaux, fazer o elogio do mestre e seu discípulo, Sócrates e Platão.
Em um texto de suas insuperáveis pregações sobre o livro de Cantares, Bernardo de Clarivaux declarou que aqueles dois homens, apesar de terem vivido no epicentro da cultura pagã, foram “frontes iluminadas pelos esplendores do gênio, aureoladas pela glória do saber, consagradas e abençoadas pela memória dos homens, mas que também se curvaram, humildes e reverentes, diante das provas da existência de Deus, e, a seu modo, o adoraram”.
Mas o fato é que, sem terem conhecido a Cristo, esses filósofos viveram na penumbra, interrogando e buscando sempre.
SÓCRATES RECONHECE A EXISTÊNCIA DO VERDADEIRO DEUS
Ao contrário do que muitos ateus pensam, as maiores inteligências que o mundo já viu, os gênios que deixaram as marcas mais profundas de sua passagem sobre a face da terra, reconheceram a existência de Deus.
Apesar de a maioria desses homens jamais ter alcançado o pleno conhecimento da verdade (pois suas mentes não haviam sido banhadas na fé e na graça daquele que lhes daria a mais completa revelação de Deus – Jesus Cristo), eles vislumbraram a existência de Deus como alguém que, de dentro da escuridão da noite, contempla uma porta fechada e, ao ver o brilho que escapa pelas frestas da porta, sabe que por trás dela brilha uma luz.
A Porta é Cristo. A Luz é Deus. Sócrates foi um desses homens que parou diante da Porta e contemplou alguns vislumbres da Luz, mas permaneceu do lado de fora.
Após ficar de pé diante de nós, o maior filósofo grego perguntou a mim e ao meu amigo e gigante da teologia cristã, Aurélio Agostinho, se queríamos ouvir as conclusões a que ele chegara após investigar e meditar sobre Deus. Em uníssono, eu e Agostinho dissemos que sim.
É muito importante lembrar ao leitor que essas conclusões que Sócrates iria nos apresentar foram um dos motivos que, alguns anos após aquele banquete, levaram os juízes atenienses a condenarem o grande filósofo à morte.
Sócrates foi acusado de estar levando os jovens de sua época a não acreditarem no politeísmo – crença na existência de muitos deuses –, e sim a aceitarem como verdade o monoteísmo – crença na existência de um só Deus.
Após alisar as dobras do manto à altura de sua monumental barriga, Sócrates deu um passo à frente, levantou o braço direito, e com o dedo indicador apontado para o céu, disse:
– Acredito na existência de um único Deus todo-poderoso, dotado de sabedoria e bondade absolutas, provadas com a sublime harmonia do universo e com a maravilhosa organização do corpo humano. Se abrirmos nossos olhos, veremos a luz. Mas em seguida o nosso olhar será naturalmente direcionado para cima, para a origem da luz natural, que é o Sol. Da mesma forma, quando os olhos do espírito se abrem, veem a verdade. E o segundo olhar do nosso espírito volta-se para onde se origina toda a Verdade, para o sol dos espíritos, para Deus.
— Existe na alma um ponto central — prosseguiu o célebre filósofo grego —uma região onde Deus se manifesta ao ser humano, tocando-o nesse ponto e suspendendo-o até Ele. Esse ponto eu costumo chamar de “a voz da consciência”, ou “a lei natural gravada no coração do ser humano”. Com relação à fé na existência de um só Deus, há nos diversos povos uma harmonia unânime que faz da humanidade uma só família.
— A crença em um só Deus é anterior a qualquer civilização — continuou Sócrates —. Os viajantes não descobriram um povo sequer sem reconhecerem nele pelo menos a existência de um culto, mesmo o mais simples, mesmo o mais grosseiro.
— Quanto a esta evidência — prosseguiu o filósofo —, todos os sábios não têm mais que uma voz. Há uma filosofia universal, uma sabedoria natural e comum; ela é a mesma no meio de todos os povos, entre todos os homens dóceis à luz da razão; é ela que nos conduz ao reconhecimento da existência de um único Deus.
Enquanto ouvia aquelas sublimes e inesquecíveis palavras, contemplei o rosto do meu amigo Agostinho e dos demais homens presentes naquela sala. Todos estavam impactados e maravilhados. Após alguns minutos de silêncio, Agostinho falou.
ALIMENTO ESPIRITUAL SERVIDO EM PLENO BANQUETE PAGÃO
Antes que meu amigo Aurélio Agostinho abrisse suas asas de águia e alçasse um altaneiro e triunfante voo, revelando, diante daqueles doutores do paganismo, suas grandiosas experiências com o nosso Deus, o Deus dos cristãos, pedi licença a Agostinho, e disse algo que aqueles gregos precisavam saber:
— Senhores, o que vocês ouvirão a seguir dos lábios do meu amigo Agostinho faz parte de uma obra de sua autoria. O que ele falará aqui está escrito nas páginas de um dos mais belos, profundos e inspirados livros da história do cristianismo, que tem como título Confissões.
Agostinho agradeceu-me efusivamente aquele aparte, e olhando bem dentro dos olhos de Sócrates, disse:
— Antes de apresentar qualquer conceito sobre o único e verdadeiro Deus, permita-me, caro filósofo, repetir aqui as palavras que usei na introdução do meu livro Confissões. É uma oração; são palavras que eu diria de joelhos, diante do meu Deus:
“Tu és grande, Senhor, e mui digno de ser louvado! Grande é o teu poder, e não há quem possa descrever tua sabedoria. E assim mesmo o homem quer louvar-te, quando ele é tão-somente parte de tuas criaturas.
"O homem, que anda rodeado e cingido pela morte, e traz consigo o testemunho do seu pecado, o testemunho que lhe avisa como tu resistes aos soberbos, mesmo assim quer louvar-te. Tu, na verdade, o moves, e o levas a te render louvores.
"Pois tu nos criaste para ti, ó Senhor, e a nossa alma vive inquieta, enquanto não repousa em ti!
“Senhor meu, faze-me esse imenso favor: ensina-me qual destas duas coisas devo fazer em primeiro lugar: Devo conhecer-te primeiro, ou primeiro que tudo te invocar?
"Mas como poderá chamar-te para que o ajudes aquele que não te conhece? Porque aquele que te invocasse, não te conhecendo, poderia facilmente errar, chamando uma coisa por outra.
"E creio que aqui está o porquê de muitos invocarem outros deuses, e não a ti, único e verdadeiro Deus. Ah, Senhor! Dize-me se é necessário invocar-te para depois conhecer-te.
"Porém, como, pois, invocarão aquele em quem não creram?, pergunta o apóstolo Paulo (Romanos 10.14a); e como crerão naquele de quem não ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? (Romanos 10.14b)
“Louvarão o Senhor os que o buscam, porque estes o acharão; e achando-o, o louvarão.
"Senhor, eu te buscarei, invocando-te; e invocar-te-ei, crendo em ti, porque acerca de ti tem pregado a minha fé, a qual tu me deste e inspiraste através da humanidade de teu Filho, que é o teu Pregador por excelência.
“Mas como invocarei o meu Deus e Senhor meu? Por certo para a habitação de mim mesmo tenho de o chamar, quando o chamar.
"Mas que lugar há em mim, para que seja possível vir a mim o meu Deus? Será que é possível vir a mim o Deus que fez os Céus e a Terra? Onde, Senhor meu, há em mim espaço em que possas caber?”
Enquanto Agostinho elevava-se nas sublimes asas da inspiração, Sócrates o escutava de cabeça baixa e os olhos semi-cerrados. Olhando com mais atenção para o rosto do filósofo, vi indícios de lágrimas nos cantos dos seus olhos, que ameaçavam deslizar por sua face.
AGOSTINHO CONVIDA SÓCRATES A MORAR NA CIDADE DE DEUS
Aproveitando aquele momento raro em que Sócrates, o mais ilustre filósofo pagão, estava visivelmente impactado pelas palavras de Agostinho, o mais inspirado e genial teólogo cristão, pedi licença a Agostinho, e solicitei que ele resumisse para Sócrates e os demais ouvintes a proposta temática de outro dos seus monumentais livros: A Cidade de Deus.
Usando seu imenso poder de síntese, Agostinho resumiu essa obra, que é considerada a visão teológica mais rica e sólida que algum cristão já concebeu sobre a participação de Deus na História:
"Dois amores fundaram e congregam duas cidades neste mundo: o amor próprio, egoísta, que leva ao desprezo de Deus fundou e agrupa a população da Cidade terrena; e o amor a Deus, altruísta, que leva ao desprezo de si próprio, fundou e agrupa a população da Cidade celestial.
"Ambas cidades existem neste mundo. Seus habitantes convivem e caminham lado a lado.
"Porém, uns, para a condenação eterna; outros, para a Jerusalém eterna. A população da primeira gloria-se em si mesma; a população da segunda, gloria-se em Deus.
"A gloriosa Cidade de Deus prossegue em seu peregrinar através da impiedade e dos tempos, vivendo cá embaixo pela fé, e com paciência espera a firmeza da Mansão eterna. (...)
"Nesta obra, que ainda estou escrevendo, ó Sócrates, pretendo defender essa Cidade eterna contra os homens que preferem adorar as divindades do paganismo, e rejeitam o divino Fundador da Cidade de Deus.
"O Rei e Fundador dessa gloriosa Cidade revelou a seu povo essa norma da suprema lei: 'Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes', Tiago 4.6.
"Falarei, portanto, da Cidade terrena, senhora dos povos escravos e, por sua vez, dominada pela paixão de dominar.
"Coisa alguma calarei do que a razão determinante dessa obra solicitar, e minha inteligência permitir. Ambas as Cidades enlaçam-se e confundem-se no mundo, e isto perdurará até que o Juízo Final as separe.
"Nesta obra desmascararei todos os deuses do paganismo. Mostrarei que o povo judeu, sob o poder do Deus único e verdadeiro, e não sob a influência dos muitos e falsos deuses, multiplicou-se grandemente no Egito, e foi tirado de lá debaixo da mão poderosa e da grande glória do Senhor.
"As mulheres judias, para terem os seus filhos, não invocaram a deusa Lucina, e sim ao verdadeiro Deus. Seus filhos mamaram sem a ajuda da deusa Rumina, e mantiveram-se sãos e salvos no berço sem a ajuda da deusa Cunina. Sem a ajuda das deusas Educa e Potina, as crianças receberam comida e bebida de suas mães.
"Foram educadas sem a ajuda dos deuses pueris cultuados por gregos e romanos, casaram-se sem a influência dos deuses conjugais, e sem a ajuda do deus Príapo, uniram-se a suas mulheres.
"Os judeus, sem invocarem o deus Netuno, mas guiados pelo Senhor, atravessaram o mar Vermelho a pé enxuto. Quando receberam o maná do céu, não adoraram nenhuma deusa Mânia.
"Ilustre filósofo Sócrates, convido-o a tornar-se cidadão dessa Cidade Eterna, governada pelo único e verdadeiro Deus" — concluiu Agostinho.
Jefferson Magno Costa
Por que será que Jacó, após ter trabalhado sete anos para receber Raquel como esposa, mas em seu lugar recebeu Lia das mãos daquela raposa velha chamada Labão, aceitou trabalhar mais sete anos pela filha mais nova do seu tio? Por amor a Raquel, seria a resposta mais plausível.
O relato completo dessa sublime história de amor está registrado nos 30 primeiros versículos do capítulo 29 de Gênesis. O fato é que quando Jacó viu Raquel, foi amor à primeira vista. Ela era “formosa de porte e de semblante” (ARA).
A beleza da moça foi um fator decisivo para o nascimento do amor que o primo sentiu pela prima durante toda a sua vida.
Curiosamente, as duas edições bíblicas mais lidas em língua portuguesa, a Almeida Revista e Corrigida e a Almeida Revista e Atualizada, usam dois termos de sentido antagônico para nos informar algo sobre os olhos de Lia. A filha mais velha de Labão tinha “os olhos baços” (ARA), ou “tenros” (ARC).
Se eram “baços”, podemos crer que eram de visão fraca, o que talvez levasse a moça a semicerrá-los para enxergar melhor. Ou talvez ela sofresse de uma doença muito comum naquela época: conjuntivite crônica. Porém, se eram “tenros”, eram “brandos, ternos, delicados”, segundo definição do Dicionário Houaiss.
Acima de qualquer discussão de beleza ou feiúra, Lia não era nenhuma mulher para se jogar fora. Jacó poderia muito bem ter-se dado por satisfeito quando a recebeu como esposa, pois ela demonstrou ser uma excelente companheira, uma mulher amorosa, submissa ao marido e temente a Deus.
Suportou pacientemente as demonstrações de preferência de Jacó pela esposa mais nova (e certamente, mais bonita). Porém, Deus tomou o partido da desprezada Lia tornando-a fértil, enquanto a preferida Raquel chorou muitos anos na esterilidade (Gênesis 29.31). Lia deu a Jacó seis filhos e uma filha.
Dois desses filhos, Judá e Levi, foram pais de reis e sacerdotes de Israel, e da descendência de Judá nasceu Jesus.
Como o assunto que estamos tratando aqui é o da beleza, vejamos se os antigos gregos, que se tornaram mundialmente famosos por suas reflexões filosóficas sobre a beleza, podem nos ensinar algo de relevante e útil sobre o assunto.
A história registra que o mais importante diálogo que os gregos já tiveram sobre a beleza, ocorreu durante um banquete em que o filósofo Sócrates esteve presente. Esse debate foi imortalizado na obra do filósofo Platão, discípulo de Sócrates, e publicado com o nome de O Banquete.
Bom seria que viajássemos no túnel do tempo até a Atenas de Socrates, e participássemos desse banquete. É o que vamos fazer agora.
Portanto, deixemos Jacó e sua abençoada família naquela bíblica cidadezinha da Mesopotâmia, Padã-Harã, e entremos na capital cultural da Grécia, Atenas.
Perguntemos às pessoas que passam por nós com ar distraído e dando a impressão de que já estão bêbadas, se sabem onde é a casa de Agaton. Alguém nos aponta uma direção. Caminhemos para lá.
Como sei que, no tempo histórico em que estamos, banquete de grego quase sempre termina em cenas impróprias para um cristão, sugiro que não batamos à porta, e sim que saquemos as nossas Bíblias, recuemos alguns passos, corramos e entremos precipitadamente porta à dentro.
“PREPARAS UMA MESA PERANTE MIM NA PRESENÇA DOS MEUS INIMIGOS”
Prezado leitor: Esqueci de lhe dizer que quem estava invadindo conosco aquele banquete pagão era um grande amigo nosso, uma das maiores glórias da teologia e da filosofia cristãs.
Após converter-se ao cristianismo em 386 d.C., nosso amigo passou a ser considerado o segundo ou o terceiro maior apologista da fé cristã. Ele era capaz de citar de cor quase toda a Bíblia.
Estou falando de Aurélio Agostinho. Eu sabia que por ele estar conosco dentro de uma sala onde o próprio Sócrates se encontrava, “o bicho ia pegar”.
Ali também estavam presentes Fedro, retórico; Ágaton, poeta e dono da festa; Aristófanes, comediógrafo; Aristodemo, discípulo de Sócrates; Erixímaco, médico; Pausânias, artista plástico, e o militar Alcibíades.
Entre os convidados, nenhuma mulher. Esse fato deixou-me com um pé atrás, e levou Agostinho a erguer a sobrancelha esquerda.
A presença de mulheres em banquetes gregos no tempo de Sócrates era raríssima. Enquanto os homens compareciam a essas reuniões para comer, beber, cantar e filosofar, as mulheres ficavam trancafiadas em casa... falando mal deles, certamente.
Para nos fazer companhia, eu também poderia ter convidado o ilustre teólogo e filósofo judeu-português Iehudad Abravanel, nascido em Lisboa em 1465, que passou a ser conhecido entre os demais filósofos e teólogos da Europa como Leão Hebreu.
Na tentativa de estabelecer uma concordância entre a Bíblia e a filosofia de Platão e Aristóteles, Leão Hebreu escreveu os sublimes Diálogos de Amor, que estaremos publicando em breve.
Mas Agostinho era mais do que suficiente para nos acompanhar como representante da fé cristã. Aquele homem alto, espadaúdo, de braços musculosos, pele morena e cabelos crespos, cujas avantajadas narinas davam a impressão de que, a qualquer momento, iriam soltar labaredas de fogo e cinzas incandescentes, fazia-me lembrar aquele anjo do Senhor que, em um único ataque, aniquilou 185 mil inimigos assírios (2Reis 19.35).
Fisicamente, aqueles gregos, com suas túnicas brancas e rosadas, não eram páreo para nós. Porém, intelectualmente... é o que iríamos ver.
Ao transpormos a porta, Aristófanes ou Erixímaco, não lembro qual dos dois, perguntou a Agostinho se ele também estava ali para beber em honra a Dionísio (o Baco dos romanos), o deus do vinho e da embriaguês.
Imediatamente, Agostinho respondeu usando uma de suas mais lindas descrições do cristão em busca do nosso Deus:
“Quando eu busco a meu Deus, não busco forma de corpo, nem formosura transitória, nem brancura de luz, nem melodia de canto, nem perfume de flores, nem unguentos aromáticos, nem mel, nem maná deleitável ao paladar, nem outra coisa que possa ser tocada ou abraçada. Nada disso busco, quando busco a meu Deus. Porém, acima de tudo isso, quando busco a meu Deus, busco uma luz sobre toda luz, que os olhos não veem; e uma voz sobre toda voz, que os ouvidos não ouvem; e um perfume sobre todo perfume, que o nariz não sente; e uma doçura sobre toda doçura, que o paladar não conhece; e um abraço sobre todos os abraços, que o tato não alcança. Porque esta luz resplandece onde não há lugar, e esta voz soa onde o ar não a leva, e este perfume é sentido onde o vento não derrama, e este sabor deleita onde não há paladar, e este abraço é recebido onde nunca será desfeito”.
Percebi imediatamente que o bravo e douto Agostinho entrara ali para higienizar e moralizar aquele banquete pagão. E sobretudo para "cristianizar" o tema que seria tratado no banquete. A beleza seria discutida sim, mas a partir de sua fonte principal e maior, o Deus dos cristãos.
Agostinho e eu poderíamos muito bem olhar para Jesus, e exaltando-o como Soberano entre vivos e mortos, entre todos os deuses pagãos e diante daqueles ilustres debatedores gregos, dizer: "Senhor, todas as minhas fontes estão em ti", Salmo 87.7.
AGOSTINHO E SÓCRATES FRENTE A FRENTE NO BANQUETE
Ao ouvirem aquela sublime descrição que o teólogo africano Aurélio Agostinho apresentou sobre a busca que a alma cristã empreende para encontrar o seu Deus, todos aqueles homens permaneceram calados por algum tempo, demonstrando estar possuídos dos sentimentos mais diversos.
Enquanto olhava diretamente para Sócrates a fim de ver qual seria sua reação, Aristodemo tinha o ar de espanto. Fedro permanecia de cabeça baixa, visivelmente impactado pelo que ouvira. O comediógrafo Aristófanes, como era de se esperar, esboçava um sorriso de ironia. Abanando-se nervosamente com um leque, o artista plástico Pausânias não escondia sua admiração.
Enquanto cochichava algo no ouvido de um dos seus servos, Ágaton deixava bem claro que desejava saber quem eram aqueles dois invasores de sua mansão e do seu banquete (no caso, eu e Agostinho), por que estávamos ali, e o que queríamos.
O médico Erixímaco mantinha-se impassível, olhando fixamente para nós, tentando descobrir se já nos conhecia.
Visivelmente bêbado, e com uma taça de vinho na mão, Alcebíades era o único que parecia não ter nenhum interesse por nós.
Foi então que Sócrates levantou-se do divã onde já estava acomodado para saborear as iguarias e a bebida que lhe seriam servidas, deu alguns passos em nossa direção e, dirigindo-se mais ao meu amigo Aurélio Agostinho do que a mim, disse:
— Ilustres e desconhecidos visitantes, em nome de todos os presentes, e em especial em nome de nosso amigo e anfitrião Ágaton, dou-lhes as boas-vindas. Alguns minutos antes de os senhores entrarem nesta sala, havia sido proposto que cada um de nós faria um discurso sobre a beleza, mas vejo que teremos de desviar por alguns minutos o nosso assunto para um tema que também nos é especialmente interessante, pois está intimamente ligado à beleza, e é a origem dela: Deus.
— Minhas reflexões —continuou Sócrates — têm-me levado a algumas conclusões sobre esse ser que está acima de todos nós. Querem ouvi-las?
Amigo leitor, na preocupação de preparar a sua mente e o seu espírito para esse momento inigualável em que o mais arguto filósofo pagão conversará sobre Deus com o mais genial e perspicaz teólogo cristão (depois do apóstolo Paulo, é claro), cabe informar que, de todos os homens que falaram sobre Deus antes da Era Cristã, o mais profundo dentre eles foi Sócrates. A prova disto está nos Diálogos do seu discípulo Platão.
Sócrates mesmo não deixou nada escrito. Tudo o que ele ensinou foi imortalizado nas obras de Platão.
O grande pregador e teólogo francês Bossuet chamava-o de “divino”, e outros teólogos chegaram a compará-lo a Moisés. “Era Moisés meditando e filosofando em grego”, observou genialmente certa vez o pregador britânico Charles Spurgeon.
Coube ao esplendoroso teólogo e pregador francês do século XIII, Bernardo de Clarivaux, fazer o elogio do mestre e seu discípulo, Sócrates e Platão.
Em um texto de suas insuperáveis pregações sobre o livro de Cantares, Bernardo de Clarivaux declarou que aqueles dois homens, apesar de terem vivido no epicentro da cultura pagã, foram “frontes iluminadas pelos esplendores do gênio, aureoladas pela glória do saber, consagradas e abençoadas pela memória dos homens, mas que também se curvaram, humildes e reverentes, diante das provas da existência de Deus, e, a seu modo, o adoraram”.
Mas o fato é que, sem terem conhecido a Cristo, esses filósofos viveram na penumbra, interrogando e buscando sempre.
SÓCRATES RECONHECE A EXISTÊNCIA DO VERDADEIRO DEUS
Ao contrário do que muitos ateus pensam, as maiores inteligências que o mundo já viu, os gênios que deixaram as marcas mais profundas de sua passagem sobre a face da terra, reconheceram a existência de Deus.
Apesar de a maioria desses homens jamais ter alcançado o pleno conhecimento da verdade (pois suas mentes não haviam sido banhadas na fé e na graça daquele que lhes daria a mais completa revelação de Deus – Jesus Cristo), eles vislumbraram a existência de Deus como alguém que, de dentro da escuridão da noite, contempla uma porta fechada e, ao ver o brilho que escapa pelas frestas da porta, sabe que por trás dela brilha uma luz.
A Porta é Cristo. A Luz é Deus. Sócrates foi um desses homens que parou diante da Porta e contemplou alguns vislumbres da Luz, mas permaneceu do lado de fora.
Após ficar de pé diante de nós, o maior filósofo grego perguntou a mim e ao meu amigo e gigante da teologia cristã, Aurélio Agostinho, se queríamos ouvir as conclusões a que ele chegara após investigar e meditar sobre Deus. Em uníssono, eu e Agostinho dissemos que sim.
É muito importante lembrar ao leitor que essas conclusões que Sócrates iria nos apresentar foram um dos motivos que, alguns anos após aquele banquete, levaram os juízes atenienses a condenarem o grande filósofo à morte.
Sócrates foi acusado de estar levando os jovens de sua época a não acreditarem no politeísmo – crença na existência de muitos deuses –, e sim a aceitarem como verdade o monoteísmo – crença na existência de um só Deus.
Após alisar as dobras do manto à altura de sua monumental barriga, Sócrates deu um passo à frente, levantou o braço direito, e com o dedo indicador apontado para o céu, disse:
– Acredito na existência de um único Deus todo-poderoso, dotado de sabedoria e bondade absolutas, provadas com a sublime harmonia do universo e com a maravilhosa organização do corpo humano. Se abrirmos nossos olhos, veremos a luz. Mas em seguida o nosso olhar será naturalmente direcionado para cima, para a origem da luz natural, que é o Sol. Da mesma forma, quando os olhos do espírito se abrem, veem a verdade. E o segundo olhar do nosso espírito volta-se para onde se origina toda a Verdade, para o sol dos espíritos, para Deus.
— Existe na alma um ponto central — prosseguiu o célebre filósofo grego —uma região onde Deus se manifesta ao ser humano, tocando-o nesse ponto e suspendendo-o até Ele. Esse ponto eu costumo chamar de “a voz da consciência”, ou “a lei natural gravada no coração do ser humano”. Com relação à fé na existência de um só Deus, há nos diversos povos uma harmonia unânime que faz da humanidade uma só família.
— A crença em um só Deus é anterior a qualquer civilização — continuou Sócrates —. Os viajantes não descobriram um povo sequer sem reconhecerem nele pelo menos a existência de um culto, mesmo o mais simples, mesmo o mais grosseiro.
— Quanto a esta evidência — prosseguiu o filósofo —, todos os sábios não têm mais que uma voz. Há uma filosofia universal, uma sabedoria natural e comum; ela é a mesma no meio de todos os povos, entre todos os homens dóceis à luz da razão; é ela que nos conduz ao reconhecimento da existência de um único Deus.
Enquanto ouvia aquelas sublimes e inesquecíveis palavras, contemplei o rosto do meu amigo Agostinho e dos demais homens presentes naquela sala. Todos estavam impactados e maravilhados. Após alguns minutos de silêncio, Agostinho falou.
ALIMENTO ESPIRITUAL SERVIDO EM PLENO BANQUETE PAGÃO
Antes que meu amigo Aurélio Agostinho abrisse suas asas de águia e alçasse um altaneiro e triunfante voo, revelando, diante daqueles doutores do paganismo, suas grandiosas experiências com o nosso Deus, o Deus dos cristãos, pedi licença a Agostinho, e disse algo que aqueles gregos precisavam saber:
— Senhores, o que vocês ouvirão a seguir dos lábios do meu amigo Agostinho faz parte de uma obra de sua autoria. O que ele falará aqui está escrito nas páginas de um dos mais belos, profundos e inspirados livros da história do cristianismo, que tem como título Confissões.
Agostinho agradeceu-me efusivamente aquele aparte, e olhando bem dentro dos olhos de Sócrates, disse:
— Antes de apresentar qualquer conceito sobre o único e verdadeiro Deus, permita-me, caro filósofo, repetir aqui as palavras que usei na introdução do meu livro Confissões. É uma oração; são palavras que eu diria de joelhos, diante do meu Deus:
“Tu és grande, Senhor, e mui digno de ser louvado! Grande é o teu poder, e não há quem possa descrever tua sabedoria. E assim mesmo o homem quer louvar-te, quando ele é tão-somente parte de tuas criaturas.
"O homem, que anda rodeado e cingido pela morte, e traz consigo o testemunho do seu pecado, o testemunho que lhe avisa como tu resistes aos soberbos, mesmo assim quer louvar-te. Tu, na verdade, o moves, e o levas a te render louvores.
"Pois tu nos criaste para ti, ó Senhor, e a nossa alma vive inquieta, enquanto não repousa em ti!
“Senhor meu, faze-me esse imenso favor: ensina-me qual destas duas coisas devo fazer em primeiro lugar: Devo conhecer-te primeiro, ou primeiro que tudo te invocar?
"Mas como poderá chamar-te para que o ajudes aquele que não te conhece? Porque aquele que te invocasse, não te conhecendo, poderia facilmente errar, chamando uma coisa por outra.
"E creio que aqui está o porquê de muitos invocarem outros deuses, e não a ti, único e verdadeiro Deus. Ah, Senhor! Dize-me se é necessário invocar-te para depois conhecer-te.
"Porém, como, pois, invocarão aquele em quem não creram?, pergunta o apóstolo Paulo (Romanos 10.14a); e como crerão naquele de quem não ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? (Romanos 10.14b)
“Louvarão o Senhor os que o buscam, porque estes o acharão; e achando-o, o louvarão.
"Senhor, eu te buscarei, invocando-te; e invocar-te-ei, crendo em ti, porque acerca de ti tem pregado a minha fé, a qual tu me deste e inspiraste através da humanidade de teu Filho, que é o teu Pregador por excelência.
“Mas como invocarei o meu Deus e Senhor meu? Por certo para a habitação de mim mesmo tenho de o chamar, quando o chamar.
"Mas que lugar há em mim, para que seja possível vir a mim o meu Deus? Será que é possível vir a mim o Deus que fez os Céus e a Terra? Onde, Senhor meu, há em mim espaço em que possas caber?”
Enquanto Agostinho elevava-se nas sublimes asas da inspiração, Sócrates o escutava de cabeça baixa e os olhos semi-cerrados. Olhando com mais atenção para o rosto do filósofo, vi indícios de lágrimas nos cantos dos seus olhos, que ameaçavam deslizar por sua face.
AGOSTINHO CONVIDA SÓCRATES A MORAR NA CIDADE DE DEUS
Aproveitando aquele momento raro em que Sócrates, o mais ilustre filósofo pagão, estava visivelmente impactado pelas palavras de Agostinho, o mais inspirado e genial teólogo cristão, pedi licença a Agostinho, e solicitei que ele resumisse para Sócrates e os demais ouvintes a proposta temática de outro dos seus monumentais livros: A Cidade de Deus.
Usando seu imenso poder de síntese, Agostinho resumiu essa obra, que é considerada a visão teológica mais rica e sólida que algum cristão já concebeu sobre a participação de Deus na História:
"Dois amores fundaram e congregam duas cidades neste mundo: o amor próprio, egoísta, que leva ao desprezo de Deus fundou e agrupa a população da Cidade terrena; e o amor a Deus, altruísta, que leva ao desprezo de si próprio, fundou e agrupa a população da Cidade celestial.
"Ambas cidades existem neste mundo. Seus habitantes convivem e caminham lado a lado.
"Porém, uns, para a condenação eterna; outros, para a Jerusalém eterna. A população da primeira gloria-se em si mesma; a população da segunda, gloria-se em Deus.
"A gloriosa Cidade de Deus prossegue em seu peregrinar através da impiedade e dos tempos, vivendo cá embaixo pela fé, e com paciência espera a firmeza da Mansão eterna. (...)
"Nesta obra, que ainda estou escrevendo, ó Sócrates, pretendo defender essa Cidade eterna contra os homens que preferem adorar as divindades do paganismo, e rejeitam o divino Fundador da Cidade de Deus.
"O Rei e Fundador dessa gloriosa Cidade revelou a seu povo essa norma da suprema lei: 'Deus resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes', Tiago 4.6.
"Falarei, portanto, da Cidade terrena, senhora dos povos escravos e, por sua vez, dominada pela paixão de dominar.
"Coisa alguma calarei do que a razão determinante dessa obra solicitar, e minha inteligência permitir. Ambas as Cidades enlaçam-se e confundem-se no mundo, e isto perdurará até que o Juízo Final as separe.
"Nesta obra desmascararei todos os deuses do paganismo. Mostrarei que o povo judeu, sob o poder do Deus único e verdadeiro, e não sob a influência dos muitos e falsos deuses, multiplicou-se grandemente no Egito, e foi tirado de lá debaixo da mão poderosa e da grande glória do Senhor.
"As mulheres judias, para terem os seus filhos, não invocaram a deusa Lucina, e sim ao verdadeiro Deus. Seus filhos mamaram sem a ajuda da deusa Rumina, e mantiveram-se sãos e salvos no berço sem a ajuda da deusa Cunina. Sem a ajuda das deusas Educa e Potina, as crianças receberam comida e bebida de suas mães.
"Foram educadas sem a ajuda dos deuses pueris cultuados por gregos e romanos, casaram-se sem a influência dos deuses conjugais, e sem a ajuda do deus Príapo, uniram-se a suas mulheres.
"Os judeus, sem invocarem o deus Netuno, mas guiados pelo Senhor, atravessaram o mar Vermelho a pé enxuto. Quando receberam o maná do céu, não adoraram nenhuma deusa Mânia.
"Ilustre filósofo Sócrates, convido-o a tornar-se cidadão dessa Cidade Eterna, governada pelo único e verdadeiro Deus" — concluiu Agostinho.
Jefferson Magno Costa
O amigo tem razão: como separar o belo de Deus, sendo Ele a expressão maior da beleza, da exuberância infinita? E vivemos inquietos na busca por alcançar o entendimento do que possa vir antes: o adorar a Deus ou encontrar a Deus! E maravilho-me quando me é dado saber que Ele já nos conhecia antes mesmo do ventre materno e pelo nome já nos chamava. Dava-nos a centelha para que sentíssemos a necessidade premente de estar ao Seu lado. O texto é riquíssimo em detalhes, ao ponto de levar esta leitora a estar naquele banquete, olhando através de uma pequena fresta, de todos escondida. Hoje o amigo lega-nos um verdadeiro tratado. Encontramos os personagens gravitando em tempos diferentes, mas comungando as mesmas inquietações, estas que hoje poderiam já estar sanadas, mas que ainda, quantos, querem questionar. A mim basta-me essa mesa preparada, saber que Deus me sonda e me conhece, que sem Ele nada sou. O irmão pode então me transportar para o início da década de 1970, quando nossa professora dª Carminda nos levava a pesquisar sobre o Belo e este de mim jamais se apartou; depois Sócrates, sabedor de que nada sabia, levava-me adentrar o universo do conhecimento, ainda que sabedora de que quanto mais avançava nas buscas, menos sabia ante a imensidão do saber humano, Platão, Aristóteles, quantos mais, ah! sem cogitar a busca insasiável de Deus, foram preenchendo meus anseios. Minha professora; seu sotaque forte de portuguesa acompanharam toda minha trajetória profissional, quando pela última vez nos encontramos no dia 12 de março de 2010, em 15 de outubro do mesmo ano partiria. Obrigada amigo pelo regresso a tão belas lembranças. Obrigada pelo texto – magistral aula. Que Deus o torne cada vez mais profícuo para que possamos absorver esse teu legado a nós disponibilizado – o conhecimento. Obrigada pelas horas dispendidas em pesquisas. Belíssimo Ministério.
ResponderExcluirPerspicaz e estudiosa Inajá, a profundidade, a plenitude e o esplendor da beleza espalhada no Universo emanam de Deus.
ResponderExcluirDeixe-me revelar aqui algo que talvez surpreenda a você e a alguns leitores que por acaso corram distraidamente os olhos sobre este comentário:
A mais rica, a mais ampla, a mais ispirada e abrangente pesquisa que já li até hoje sobre Deus como tema de beleza universal expressada em todas as artes, não foi escrita por um filósfo grego, ou por um filósofo alemão, ou por um filósofo inglês, e sim pelo eruditíssimo e sublime teólogo, filósofo, tradutor e insuperado conhecedor da literatura de espiritualidade patrística e da Idade Média e Moderna, o escritor espanhol (ele lia em dez idiomas; tinha em Santander uma biblioteca rara e seletíssima, de 60 mil livros) Don Marcelino Menendez y Pelayo.
Sua biografia é cheia de detalhes assombrosos que beiram ao mito. Tenho uns 30 livros desse escritor excepcional, que foi para mim um dos três maiores exemplos de amor à cultura cristã e de vida dedicada ao estudo e divulgação das pedras preciosas da antiga literatura eclesiástica, e dos clássicos produzidos na Espanha e em Portugal.
Sua magistral e até hoje insuperada obra sobre o belo universal (que guardo com todo zelo em minha biblioteca), intitulada História de las Ideas Esteticas en Espanha, não recebeu um bom título, e consequentemente tem escondido suas 1300 maravilhosas páginas de erudição, bom gosto e revelações esplêndidas, dos olhos de milhares de leitores que poderiam hoje estar usufruindo de suas maravilhas.
Para escrever esse meu pequeno ensaio-fantasia que você acabou de comentar, li algumas obras de Platão, especialmente O Banquete, e quatro ou cinco obras de Agostinho.
Porém, meu grande sonho é poder receber de Deus a dádiva do tempo para resumir para os leitores desse blog, essa magistral obra de Don Marcelino Menendez y Pelayo.
22 de fevereiro de 2011 11:21
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Caro irmão em Cristo
ResponderExcluirObrigada por mais esta informação. Com toda certeza surpreendeu-me. Sem dúvida a dádiva do tempo Deus irá proporcionar para que essa obra seja entregue a nós, teus leitores. Valiosa indicação.