(Discurso proferido na sede da Academia Evangélica de Letras do Brasil, no Rio de Janeiro, em outubro de 2003)
Excelentíssimo Sr. Presidente da Academia Evangélica de Letras do Brasil, acadêmico Josué Sylvestre; excelentíssimas demais autoridades presentes; ilustríssimos confrades, caríssimos irmãos e amigos convidados:
Um padre contra a Igreja Católica Romana – eis a única idéia que muitas pessoas fazem da Reforma Protestante. Um monge contra o monopólio de poder e autoridade do Papa – eis como alguns estudiosos simplificam esse grande acontecimento do século XVI.
Martinho Lutero protestando contra a venda de indulgências – eis o resumo que quase todos nós fazemos da grande revolução que tirou um imenso grupo de cristãos sinceros e fiéis de dentro do nevoeiro tenebroso que encobriu a Igreja Cristã Oficial durante a Idade Média, e trouxe-os para o claro sol da verdade que caracterizou a formação da Verdadeira Igreja Cristã na Idade Moderna.
Sr. Presidente, minha opinião é que a bandeira que os turcos ergueram sobre as ruínas das muralhas de Constantinopla em 1453 não deveria ter sido considerado o ato que marcou o início da Idade Moderna.
O acontecimento que verdadeiramente assinalou o início dessa idade ocorreu 64 anos depois, em 1517, precisamente no dia 31 de outubro, data em que Martinho Lutero afixou suas 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg, contra a venda de perdão que vinha sendo vergonhosamente praticada pela Igreja Católica Romana.
Portanto, a Reforma Protestante não foi um ato isolado, a rebelião de um monge alemão que não queria mais obedecer ao Papa. Foi muito mais do que isto.
Ela representou a confluência dos anseios de milhares de corações que serviam a Deus com sinceridade, espalhados em muitos países. Ela modificou profundamente os valores econômicos, culturais e religiosos da humanidade.
Fui convidado pelo digníssimo Presidente desta academia a falar sobre a influência dessa grandiosa revolução de postura, de conduta e de ideias na literatura ocidental, e tecer alguns comentários sobre os personagens que a protagonizaram.
O que eu poderia dizer sobre um acontecimento de tão vasta e múltipla repercussão histórica, nesses 15 ou 20 minutos que me foram concedidos? Como não entrar também para a galeria dos oradores de conclusões superficiais e apressadas, à semelhança desses aos quais me referi no início de minha fala?
Sr. Presidente, em se tratando de um assunto tão amplo, ser-me-ia necessária uma semana de conferências para falar sobre um tema tão rico e de múltiplos ângulos de abordagem como este que vossa excelência me propôs.
Porém, peço vênia aos senhores para avançar o sinal vermelho que assinala minhas limitações, e vejamos o que poderei dizer em um espaço de tempo tão curto sobre um assunto tão vasto.
“A Reforma foi um movimento que nasceu no coração de Deus e de Martinho Lutero”, escreveu recente e excelentemente em um de seus ensaios um de nossos brilhantes confrades, o Rev. Guilhermino Cunha.
Sim, e preparando a bênção da Reforma, Deus já havia inspirado o também o alemão Gutenberg a criar, em 1450, os tipos móveis que levariam a imprensa a dispor de meios para fazer circular rapidamente a informação escrita, facilitando deste modo a divulgação das idéias reformistas. “Gutenberg tornou Lutero possível”, observou o historiador norte-americano Will Durant.
A TROPA DE ELITE QUE REALIZOU A REFORMA PROTESTANTE
Antes de tudo, não podemos esquecer que a Reforma, com a mesma intensidade que influenciou, também foi produto de influência. O interesse pelo estudo dos antigos autores da literatura grega e latina que lastreou o humanismo, também lastreou a Reforma.
Não foram os camponeses famintos da França, nem os operários desdentados da Tchecoslováquia, nem os aldeões rudes da Grã-Bretanha ou os beberrões barulhentos da Alemanha que realizaram a Reforma Protestante.
Assim como Deus convocou do meio da fina flor da intelectualidade rabínico-judaica o apóstolo Paulo e deu-lhe a missão de internacionalizar o cristianismo, da mesma forma Deus convocou do meio da fina flor da intelectualidade européia os homens que iriam realizar a Reforma Protestante.
Algumas décadas antes da Reforma, além do interesse pelo estudo do grego e do latim, a presença marcante do judeu no cenário cultural da Europa havia levado os intelectuais europeus a se interessarem também pelo estudo do hebraico.
E entre esses intelectuais estavam pré-reformadores e reformadores, como o nosso irmão italiano Jerônimo Savonarola, uma das mais eloquentes e corajosas vozes que já pregou o evangelho na língua de Dante Alighiere; nosso irmão inglês João Wycliffe, o maior erudito da Universidade de Oxford; nosso irmão suíço Zwinglio, o aluno mais brilhante das universidades de Basiléia e Viena; nosso irmão francês João Calvino, que com sua capacidade de argumentação teológica e sistematização de idéias, foi uma espécie de apóstolo Paulo da Reforma Protestante; nosso irmão tcheco João Huss, que apesar de só ter começado a estudar aos 13 anos de idade, 25 anos depois se tornaria reitor da Universidade de Praga; nosso irmão alemão Martinho Lutero, o mais veemente, polêmico e agitador de todos eles, uma espécie de apóstolo Pedro (sem negação a Cristo) da Reforma Protestante; e, finalmente, para citar só esses no meio de tantos outros, nosso irmão holandês Erasmo de Rotterdam, que apesar de ter divergido de Lutero com relação ao livre-arbítrio e ter sido acusado de manter uma postura ambígua com relação à Reforma, foi o mais erudito e de cultura mais refinada entre os pré-reformadores.
Quem desejar se inteirar do imenso e silencioso trabalho que Erasmo realizou em favor da Reforma Protestante, e dos esforços desesperados e inúteis que a Igreja Católica Romana realizou através da Contra-Reforma, deve procurar ler os dois livros que melhor historiam e documentam esses assuntos, a esplêndida obra do francês Marcel Bataillon, Érasme Et l’Espagne (existe uma tradução dessa obra por uma editora mexicana, sob o título Erasmo en España), e a magistral e até hoje não superada obra do erudito espanhol Marcelino Menendez Pelayo, Historia de los Heterodoxos Españoles (sob a ótica católica apostólica romana).
O estudo desses livros nos ajuda a entender, entre outros importantíssimos assuntos, o que levou os nossos irmãos espanhóis Casiodoro de Reyna e Cipriano de Valera, e o nosso irmão português João Ferreira de Almeida a traduzirem a Bíblia para o espanhol e o português, respectivamente.
Entre inúmeras outras bênçãos que a Reforma Protestante nos trouxe, devemos agradecer ao Senhor por hoje termos liberdade de ler a Palavra de Deus em nossa língua sem corrermos o risco de ser punidos por esse ato. Porém, dessa liberdade não gozaram os nossos irmãos da época da Reforma Protestante, que foram torturados, queimados ou esquartejados por simplesmente terem praticado o “crime” de ler a Bíblia em “idioma vulgar”, ou seja, em uma língua que não fosse o grego, o hebraico ou o latim.
O sonho de Martinho Lutero era colocar uma Bíblia na mão de cada homem comum. E ele construiu a base para a realização desse sonho – que só agora, em nossos dias, está próximo de se tornar realidade – após trabalhar de 1521 a 1546 (durante 25 anos!), traduzindo a Bíblia completa para o alemão.
Portanto, as ferramentas para o estudo da Bíblia em seus idiomas originais – o grego, o hebraico e o aramaico – capacitaram os reformadores a estudarem os documentos que revelavam detalhes importantíssimos da cultura rabínico-judaica, como era a liturgia da Igreja que Jesus fundara com seus discípulos, e quais eram as doutrinas essenciais e básicas que seus apóstolos e pastores ensinavam.
O pastor Eduardo Carlos Pereira, no seu livro O Problema Religioso da América Latina, um clássico publicado em São Paulo em 1920, hoje esgotado e quase totalmente desconhecido da maioria dos estudiosos evangélicos, observa que após terem sido “abertos os mananciais divinos pelo conhecimento dos idiomas originais, fez-se intensa luz sobre os erros e abusos do Catolicismo Romano”.
Em suma: Todos os reformadores tiveram uma sólida cultura humanista, e traduziram ou escreveram grandes obras que influenciaram decisivamente a literatura ocidental. A Reforma Protestante beneficiou-se desses bons ares trazidos pelos estudos humanistas, estudos que iriam culminar no Renascimento.
Porém, enquanto o Renascimento afastaria mais e mais os homens de Deus e os conduziria ao movimento ateísta-materialista que culminou na Revolução Francesa, a Reforma Protestante aproximaria mais e mais as pessoas de Jesus Cristo e de sua Palavra. Através da releitura da Bíblia, Lutero encontrou elementos fundamentais que serviram de espinha dorsal para a Reforma e para a Igreja que nasceu dela.
O desejo de ler a Bíblia semeado pelos reformadores no meio do povo fez nascer a necessidade da criação de escolas nas quais todos pudessem aprender a ler e a escrever, já que a maior parte da população do mundo da época da Reforma Protestante era analfabeta. Lutero se empenhou em criar escolas populares na Alemanha. Desse movimento nasceu a bênção da educação popular universal. Nos países onde aconteceu a Reforma, a educação do povo recebeu grande impulso.
Encerro este discurso com uma convicção final confirmando uma convicção inicial: não fui capaz de falar nem dez por cento sobre o assunto que o tema desta palestra me obrigava a falar. Porém, antes de encerrar em definitivo minhas palavras, tenho duas oportunas observações a fazer sobre dois reformadores que ao longo da história têm sido injustamente acusados de insubordinação, deslealdade e uso egocêntrico de sua cultura, acusações feitas a Martinho Lutero e a Erasmo de Roterdam.
O NOSSO BOM IRMÃO LUTERO
Lutero foi o homem mais ordeiro e leal em toda a história da Reforma Protestante. Se sua atitude mudou com relação à Igreja Católica Romana no decorrer do processo da Reforma, foi porque ele jamais compactuaria com a imoralidade, a tirania e a mentira daquela Igreja. Lendo as 95 teses, podemos confirmar sua lealdade ao Papa Leão X, que tempos depois daria ordem para que matassem Lutero.
Enquanto a Igreja Oficial se esfacelava internamente comida pelo câncer do pecado, nosso bom irmão Lutero defendia, nas teses de número 50 e 51, a honestidade, a fidelidade a Cristo e a boa intenção do Papa para com suas ovelhas. Eis o que Lutero escreveu na tese 50:
“Devemos ensinar aos cristãos que, se o Papa conhecesse os exageros praticados pelos pregadores de indulgências, ele preferiria que a basílica de São Pedro fosse reduzida a cinzas a ter de construí-la com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas.”
Que exemplo de confiança na conduta do Papa! Que exemplo de lealdade a ele! Porém, a história mostra que o que o nosso bom irmão Lutero disse que o Papa não seria capaz de fazer com suas ovelhas, foi exatamente o que o Papa fez. Ou pelo menos autorizou que o fizessem.
Consultando, na Fundação Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, um livro escrito por Antônio Ancheu e publicado em 1880 em Portugal pela Biblioteca Republicana Democrática sob a título de Livro das Taxas da Igreja de Roma, descobri, estarrecido, que no Portugal do tempo de Martinho Lutero e de décadas depois de sua morte, qualquer pessoa podia cometer qualquer tipo de crime e depois ser perdoada, desde que pagasse a taxa estipulada pela Igreja Católica Romana para aquele crime.
Por exemplo: o perdão por um estupro custava 408 réis. Quem matasse intencionalmente seu pai, ou sua mãe ou um irmão ou uma irmã, escaparia de ser preso pagando 2.096 réis. Porém, quem desse uma boa e merecida surra em um padre, só escaparia da cadeia se pagasse 4.571 réis. Portanto, era muito mais barato cometer um estupro, um parricídio, um matricídio ou um fratricídio do que surrar um padre.
O GRANDE EXEMPLO DO NOSSO IRMÃO ERASMO DE ROTTERDAM
E, finalmente, faço minhas as palavras de Erasmo de Rotterdam, o homem que soube como poucos colocar sua inteligência e imensa cultura à serviço do evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo, e cujo sonho, como o de Lutero, era também colocar uma Bíblia na mão das pessoas menos favorecidas. Eis o que Erasmo escreveu na introdução de sua tradução do Novo Testamento:
“Gostaria que a mulher mais simples pudesse ler os evangelhos e as epístolas do apóstolo Paulo. Gostaria que essas palavras fossem traduzidas para todas as línguas, a fim de que não só os escoceses e os irlandeses, mas também os turcos e os sarracenos pudessem lê-las. Desejo que o lavrador as cante para si mesmo enquanto trabalha com seu arado, e o viajante preencha com elas a monotonia de sua viagem.”
Que a comemoração dos 41 anos de existência da Academia Evangélica de Letras do Brasil, a nossa academia, e os 486 anos da Reforma Protestante levem essa academia a envidar, através de todos os ilustres intelectuais que a compõem, esforços cada vez maiores para tornar mais e mais realidade o sonho desses nossos corajosos e competentes irmãos reformadores.
Sola Gratia
Sola Fide
Sola Scriptura
Solo Cristo
Solo a Dei Glória.
Somente a Graça
Somente a Fé
Somente a Escritura
Somente Cristo
Só a Deus toda a Glória.
Amém. Tenho dito.
Acadêmico Jefferson Magno Costa