Jefferson Magno Costa
“Passará o céu e a terra, mas o que dizem as minhas palavras não passará” (Lc 21.33).
Tudo passa, e nada passa. Tudo passa para a vida, e nada passa para a conta de Deus.
PASSOU A VIDA PARADISÍACA NO JARDIM DO ÉDEN
(...) Consideremos o mundo desde seus princípios, e o veremos sempre, como figura de teatro, aparecendo e desaparecendo, porque sempre está passando. A primeira cena deste teatro foi o Paraíso terrenal, no qual apareceu o primeiro casal vestido de imortalidade e cercado de delícias. Mas quanto durou esta aparência? Estendeu Eva o braço na direção do fruto proibido, e no brevíssimo espaço de tempo em que o pedaço fatal do fruto passou pela garganta do ser humano, passou também com ele o mundo do estado da inocência ao da culpa, da imortalidade à morte, da pátria ao exílio, das flores aos espinhos, do descanso ao trabalho, e da felicidade extrema ao extremo da infelicidade e miséria.
PASSARAM OS HOMENS DE QUASE MIL ANOS DE IDADE
PASSARAM OS GIGANTES
PASSARAM OS QUATRO MAIORES IMPÉRIOS DO MUNDO
Após os homens ser diminuídos nos corpos e nas idades, e quando tinham a morte mais perto da vista (quem diria!), então cresceram mais na ambição e na soberba. E sendo todos por natureza iguais e livres, houve alguns que tiveram a ideia de se tornar senhores dos outros através da violência, e o conseguiram. O primeiro homem que se atreveu a por coroa na cabeça foi Nimrod, que também com o nome de Nino, ou Belo, deu princípio aos quatro impérios, ou monarquias do mundo. O primeiro foi o dos assírios e caldeus; e onde está o império caldaico? O segundo foi o dos persas; e onde está o império persa? O terceiro foi o dos gregos; e onde está o império grego? O quarto e maior de todos foi o dos romanos; e onde está o império romano? Se alguma coisa permanece deste, é só o nome: todos passaram, porque tudo passa.
Em três famosas visões representou Deus estes mesmos impérios a um rei e a dois profetas. A primeira visão foi a Nabucodonosor na estátua de quatro metais (Dn 2.31,32); a segunda a Zacarias em quatro carroças de cavalos de diferentes cores (Zc 6.1-5); a terceira a Daniel em um conflito dos quatro ventos principais, que no meio do mar travavam batalha (Dn 7.2). Pois se todas essas visões vinham da parte de Deus, e todas representavam os mesmos impérios, por que a sabedoria divina variou tanto as figuras, e sobre a primeira da estátua tão clara e inteligível, acrescentou outras duas tão diferentes em tudo? Porque a estátua, na dureza dos metais de que era composta, e no próprio nome de estátua, parece que representava estabilidade e firmeza. E porque nenhum daqueles impérios havia de perseverar firme e estável, mas todos haviam de mudar sucessivamente, e ir passando de umas nações a outras, por isso Deus os tornou a representar na variedade das carroças, na inconstância das rodas, e na carreira e velocidade dos cavalos.
Mas não parou aqui a energia da representação. A estátua estava em pé, e as carroças podiam estar paradas. E porque aqueles impérios, correndo no tempo precipitadamente mais do que cavalos à rédea solta, não haviam de parar nem por um só momento, e sempre haviam de ir mudando e passando; por isso, finalmente, Deus os representou na coisa mais inquieta, mutável e instável, que são os ventos, e muito mais quando embravecidos e furiosos (Dn 7.2).
PASSARAM OS GRANDES REIS
Enquanto passaram esses quatro impérios, que foi a terceira, quarta, quinta e sexta idade do mundo, entrando também pela sétima, quem seria capaz de dizer por quantas mudanças passou o próprio mundo? Quando o primeiro império começou, então começou também a idolatria, justo castigo do Céu, pois os homens que se fizeram adorar, chegaram eles também a adorar paus e pedras. Porém os reis que tinham sido os idólatras, foram eles mesmos canonizados depois pela adulação e a lisonja, e ou ainda vivos ou depois de mortos, tornaram-se ídolos. Assim surgiu Saturno, assim Júpiter, assim Mercúrio, assim Apolo, assim Marte, assim Vênus, assim Diana; e ainda que todos estes tenham deixado os seus nomes gravados nas estrelas, elas permanecem, mas eles passaram. Passaram os ídolos, e também passaram os oráculos com que nele respondia o pai da mentira, porque ao som da verdade do Evangelho, todos emudeceram.
PASSARAM OS GRANDES EXÉRCITOS E OS GRANDES COMBATENTES
Então começaram as guerras. O que direi dos exércitos inumeráveis, das batalhas campais e marítimas, das vitórias e triunfos de umas nações, e da derrota, ruína e servidão de outras, de maneira variada e alternada sempre? Só posso dizer que a glória e a alegria dos vencedores, assim como a dor e a afronta dos vencidos, tudo passou, porque tudo passa.
O exército de Xerxes, que foi o maior que o mundo já viu na antiguidade, constava de cinco mil navios e cinco milhões de combatentes. E por esses soldados terem unido, ao atravessarem o mar na altura do Helesponto, uma ponta do continente à outra ponta, e cavado e tornado navegável o monte Ato, o orador romano Marco Túlio Cícero disse que esse exército caminhava pelos mares a pé, e navegava os montes.
Mas todo aquele imenso e formidável aparato de guerra, que ao ser visto fez tremer a terra e o mar, tão rapidamente passou e desapareceu ao ser desbaratado e vencido, que dele só restou essa curiosa frase de Cícero. O próprio Temístocles, que com muito desigual poder o desfez e o pôs em fuga, também passou, como na Grécia e fora dela passaram todos os famosos capitães e suas vitórias. Passou Pirro, passou Mitridates, passou Filipe da Macedônia; passaram Heitor e Aquiles, passaram Aníbal e Cipião, passaram Pompeu e Júlio César, passou o grande Alexandre, nome singular e sem igual, e até Hércules, ou sendo um, ou muitos, todos passaram, porque tudo passa.
PASSARAM OS GRANDES HOMENS DAS CIÊNCIAS, LETRAS E ARTES
As Letras costumam ser citadas após as Armas. Em diversas partes no tempo desses impérios, floresceram variadamente todas as ciências e artes. Floresceu a filosofia, floresceu a matemática, floresceu a teologia, floresceu a astronomia, floresceu a medicina, floresceu a música, floresceu a oratória, floresceu a poética, floresceu a história, floresceu a arquitetura, floresceu a escultura. Mas assim como as flores murcham e secam, assim passaram os autores mais celebrados das letras, ciências e artes.
Na escultura passou Fídias e Lisipo; na pintura passou Timantes e Apeles; na arquitetura passou Meliagenes e Demócrates; na música passou Orfeu e Anfião; na história, Tucídides e Lívio; na eloquência, Demóstenes e Cícero; na poética, Homero e Virgílio; na astronomia, Anaxágoras e Ptolomeu; na medicina, Esculápio e Hipócrates; na matemática, Euclides e Arquimedes; na filosofia, Platão e Aristóteles; na teologia, Agostinho e Tomás de Aquino. E junto com todas as ciências passaram os sete sábios da Grécia, porque ou junto, ou dividido, tudo passa. Só a ética e a moral, como tão necessárias à vida e à virtude, parece que não haviam de passar; mas os platônicos, os peripatéticos, os epicureus, os cínicos, os pitagóricos, os estóicos, os acadêmicos, eles e suas escolas, todos passaram.
PASSARAM OS CATIVEIROS DO POVO JUDEU
(...) A república hebraica nasceu no cativeiro do Egito; e quem a observasse atentamente podia facilmente prever os três cativeiros pelos quais a nação de Israel foi arrancada da pátria. Primeiramente foi levada cativa por Salmanasar, quando então viveu entre os assírios; outra vez foi levada ao cativeiro por Nabucodonosor, e viveu desterrada entre os babilônios; e a terceira e última vez caiu cativa sob o comando de Tito e Vespasiano, e desta vez tornou-se desterrada entre todas as terras e nações do mundo.
PASSARAM OS PATRIARCAS, JUÍZES, REIS E CAPITÃES DE ISRAEL
PASSARAM AS ISRAELITAS FORMOSAS
PASSARAM OS PROFETAS
Floresceram entre o mesmo povo dezesseis profetas reconhecidos, quatro maiores e doze menores. Porém, no espaço de três séculos, tanto os maiores quanto os menores, de Oseias a Malaquias, todos passaram. Passaram os milagres da vara, passaram os da serpente de metal, passaram os de Elias e Eliseu, e porque só faltava passar a Lei de Moisés e o sacerdócio de Arão, a Lei e o sacerdócio também passaram, porque tudo passa.
Eu gostaria de perguntar ao mundo, já que minha memória está cheia de tantas coisas que passaram, se existe alguma coisa de origem humana que não tenha passado. Às sete construções que a fama deu o nome de maravilhas do mundo, alguns acrescentaram como oitava o anfiteatro romano. Mas a oitava ou nona maravilha é o fato de vermos que todas essas maravilhas, que pareciam eternas, passaram. A primeira maravilha foram as pirâmides do Egito, a segunda os jardins suspensos da Babilônia, a terceira o farol de Alexandria, a quarta o colosso de Rodes, a quinta o mausoléu de Cária, a sexta o templo de Diana dos Efésios, a sétima a estátua de Júpiter Olímpico. E deixando o anfiteatro e as pirâmides, das quais só vemos hoje as ruínas, os jardins suspensos arrasaram-se, o colosso desfez-se, o mausoléu sepultou-se, a torre sumiu-se, o templo ardeu, o farol apagou-se e passou, porque tudo passa.
PASSARAM AS MAIORES CIDADES DA TERRA
(...) Nínive, corte de Nino, foi a maior cidade do mundo. Para atravessá-la de ponta a ponta levava-se nada menos que três dias a pé. Foi edificada de maneira arrogante para que nenhuma outra cidade a igualasse, como não a igualou. Mas onde está hoje essa Nínive? Ecbátana, corte de Arfaxade, e cidade que o texto sagrado chama potentíssima, era cercada de sete fileiras de muros, todos de pedras quadradas, cada uma de vinte e sete palmos por todas as faces, e as portas com a prodigiosa altura de 45 metros. Mas onde está essa Ecbátana? Susa, corte de Assuero, e metrópole de 127 províncias, o teto do seu principal palácio tinha a representação de um céu estrelado, fundado sobre colunas de ouro e pedras preciosas, e os muros eram de mármore branco e jaspe de diferentes cores. Podemos imaginar quão forte e invencível seria essa cidade, tendo sido ela construída para defender tão grande monarca, que dominava tantos reinos e guardava tantos tesouros. Mas onde está essa Susa?
Se houvéssemos de fazer a mesma pergunta às ruínas de Tebas, de Mênfis, de Bactro, de Cartago, de Corinto, de Sebasta, e da mais conhecida de todas, Jerusalém, necessário seria dar a volta pela redondeza da terra. Porém, todas essas cidades passaram; uma, ou talvez duas, passaram só no seu antigo esplendor; as demais, na sua totalidade. O mesmo podemos dizer das planícies, vales e montes sobre os quais se levantavam aqueles vastíssimos corpos de casas, muralhas e torres que formavam essas cidades. De algumas não se sabe os lugares onde estiveram; sobre outras hoje lavra-se, semeia-se e planta-se nos mesmos lugares onde essas cidades existiram, sem mais vestígios do que aqueles que os arados encontram quando rompem a terra. Isto é para que os homens, compostos de carne e sangue, não se queixem da brevidade da vida, pois as pedras também morrem; e para que ninguém se atreva a negar que tudo quanto existiu, passou, e tudo quanto existe hoje, passará.
PASSARAM OS GRANDES REINOS
(...) A Terra compõe-se de reinos, os reinos compõem-se de cidades, as cidades compõem-se de casas e campos, e principalmente de homens, e tudo isto, que tudo é Terra, perpetuamente está passando. Daniel, revelando a Nabucodonosor o significado de sua estátua, disse que Deus muda os tempos e as idades, e conforme essas mudanças, os reinos passam de uma parte para outra (Dn 2.21). Deste modo, passou o próprio reino de Nabucodonosor para a Pérsia, e dos persas para a Grécia, e dos gregos para Roma, e dos romanos para tantos outros quantos hoje têm coroas sobre a cabeça, os quais se devem lembrar que tudo passa, e que eles também passarão. (...) Não há pedra, nem telha, nem planta, nem raiz, nem palmo de terra sobre a Terra que não esteja sempre passando, porque tudo passa.
PASSOU A GRANDIOSIDADE DE ROMA
A maior ostentação de grandeza e majestade que já se viu neste mundo foi a pompa e magnificência dos triunfos romanos. O cortejo triunfal desfilava pelas principais ruas da cidade, naquele tempo vastíssima, caminhado em direção ao Capitólio. À frente vinham os soldados vencedores, proferindo aclamações de triunfo. Em seguida, viam-se, representadas ao natural, as cidades vencidas, as montanhas inacessíveis escaladas, os rios caudalosos atravessados por pontes, as fortalezas, as armas dos inimigos, e as máquinas com as quais foram vencidas. Via-se um grande número de carros trazendo os despojos e riquezas conquistados, e tudo o que era raro e admirável trazido como presentes das regiões agora sujeitas à coroa de Roma. Depois de tudo isto aparecia a multidão dos cativos, com alguns reis acorrentados; e por fim, em carroça de ouro e pedras preciosas, arrastada por elefantes, tigres ou leões domados, aparecia o general ou o imperador que trouxera aquele cortejo triunfal à Roma. E enquanto os formidáveis animais puxavam a carroça sobre a qual estava orgulhosamente sentado o principal herói de tudo aquilo, ele ouvia um servo dizer-lhe repetidamente aquele famosa e temível frase: “Lembra-te, homem: tu és mortal”.
Enquanto essa grande comitiva caminhava, as ruas, as praças, as janelas e os palanques estavam cobertos de uma imensa multidão, todos querendo ver o espetáculo. E se o filósofo Diógenes, com sua fina ironia, perguntasse quais eram os que passavam, se os do triunfo, se os que estavam olhando, não há dúvida de que a pergunta pareceria digna de riso. Mas o certo é que tanto os da procissão do triunfo quanto os que das janelas e palanques observavam, uns e outros igualmente passavam, porque a vida e o tempo nunca pára. Ou estando parados, ou caminhando, todos nós, com igual velocidade, passamos.
O TEMPO PASSA VELOZMENTE
(...) Nem a Primavera com as suas flores, nem o Verão com as suas espigas, nem o Outono com os seus frutos, nem o Inverno com os seus frios e neves, por mais floridos ou entorpecidos que pareçam, podem estar parados um só momento. Passam as horas, passam os dias, passam os anos, passam os séculos, e se houvesse hieróglifos com os quais pudéssemos pintar essa passagem veloz do tempo, teriam que ser todos com asas, não só correndo e fugindo, mas voando e desaparecendo.
TUDO PASSA, E NÓS TAMBÉM PASSAMOS
Todos estamos embarcados no mesmo navio, que é a vida, todos navegamos sob o mesmo vento, que é o tempo. E assim como no navio uns governam o leme, outros controlam as velas; uns vigiam, outros dormem; uns passeiam, outros estão sentados; uns cantam, outros jogam, outros comem, outros nenhuma coisa fazem, e todos igualmente viajam para o mesmo porto; da mesma forma nós, mesmo que não pareça, insensivelmente estamos passando sempre, e cada um aproximando-se cada vez mais do seu fim. Pois enquanto tu dormes o teu tempo anda. Eu disse pouco ao dizer que o tempo anda, porque corre e voa. Mas o fato é que nós dormimos. Porém, mesmo tendo os olhos abertos para ver que o tempo passa, só os mantemos fechados quando se trata de considerar que nós também passamos.
Tudo passa, como o navio que vai cortando as ondas, e depois que passou, não se lhe acha o rastro. Tudo passa, como a ave que, voando e batendo o vento leve, não deixa sinal de sua trajetória. Tudo passa, como a seta despedida do arco ao lugar destinado, que dividindo o ar, o qual logo se fecha e une, não é possível saber por onde ela passou.
(Trecho do monumental Sermão da Primeira Dominga do Advento, pregado na Capela Real, em Lisboa, em 1670, pelo maior pregador da língua portuguesa, Antônio Vieira. Adaptado e atualizado para o leitor do século 21).
Jefferson Mago Costa
“Passará o céu e a terra, mas o que dizem as minhas palavras não passará” (Lc 21.33).
Tudo passa, e nada passa. Tudo passa para a vida, e nada passa para a conta de Deus.
PASSOU A VIDA PARADISÍACA NO JARDIM DO ÉDEN
(...) Consideremos o mundo desde seus princípios, e o veremos sempre, como figura de teatro, aparecendo e desaparecendo, porque sempre está passando. A primeira cena deste teatro foi o Paraíso terrenal, no qual apareceu o primeiro casal vestido de imortalidade e cercado de delícias. Mas quanto durou esta aparência? Estendeu Eva o braço na direção do fruto proibido, e no brevíssimo espaço de tempo em que o pedaço fatal do fruto passou pela garganta do ser humano, passou também com ele o mundo do estado da inocência ao da culpa, da imortalidade à morte, da pátria ao exílio, das flores aos espinhos, do descanso ao trabalho, e da felicidade extrema ao extremo da infelicidade e miséria.
PASSARAM OS HOMENS DE QUASE MIL ANOS DE IDADE
As vidas naquele princípio costumavam ser de setecentos, de oitocentos, de novecentos, e de quase mil anos. E que pena que essa longevidade tenha cessado! Naqueles tempos viver muitos séculos era natural; hoje, chegar não a um século, mas perto dele, é milagre.
PASSARAM OS GIGANTES
Os homens viveram durante vários séculos até Noé, mas também passaram. Aquelas pessoas não só alcançavam vários séculos de vida, mas também grande estatura. Dos filhos de Deus, que eram os descendentes de Seth, e das filhas dos homens, que eram as descendentes de Caim, nasceram os gigantes. E na história das batalhas de Davi, temos o registro de outros quatro, ainda que de muito menor estatura. Mas, enfim, acabou a era dos gigantes, por que tudo nesta vida, e mais depressa o que é grande, acaba e passa.
PASSARAM OS QUATRO MAIORES IMPÉRIOS DO MUNDO
Após os homens ser diminuídos nos corpos e nas idades, e quando tinham a morte mais perto da vista (quem diria!), então cresceram mais na ambição e na soberba. E sendo todos por natureza iguais e livres, houve alguns que tiveram a ideia de se tornar senhores dos outros através da violência, e o conseguiram. O primeiro homem que se atreveu a por coroa na cabeça foi Nimrod, que também com o nome de Nino, ou Belo, deu princípio aos quatro impérios, ou monarquias do mundo. O primeiro foi o dos assírios e caldeus; e onde está o império caldaico? O segundo foi o dos persas; e onde está o império persa? O terceiro foi o dos gregos; e onde está o império grego? O quarto e maior de todos foi o dos romanos; e onde está o império romano? Se alguma coisa permanece deste, é só o nome: todos passaram, porque tudo passa.
Em três famosas visões representou Deus estes mesmos impérios a um rei e a dois profetas. A primeira visão foi a Nabucodonosor na estátua de quatro metais (Dn 2.31,32); a segunda a Zacarias em quatro carroças de cavalos de diferentes cores (Zc 6.1-5); a terceira a Daniel em um conflito dos quatro ventos principais, que no meio do mar travavam batalha (Dn 7.2). Pois se todas essas visões vinham da parte de Deus, e todas representavam os mesmos impérios, por que a sabedoria divina variou tanto as figuras, e sobre a primeira da estátua tão clara e inteligível, acrescentou outras duas tão diferentes em tudo? Porque a estátua, na dureza dos metais de que era composta, e no próprio nome de estátua, parece que representava estabilidade e firmeza. E porque nenhum daqueles impérios havia de perseverar firme e estável, mas todos haviam de mudar sucessivamente, e ir passando de umas nações a outras, por isso Deus os tornou a representar na variedade das carroças, na inconstância das rodas, e na carreira e velocidade dos cavalos.
Mas não parou aqui a energia da representação. A estátua estava em pé, e as carroças podiam estar paradas. E porque aqueles impérios, correndo no tempo precipitadamente mais do que cavalos à rédea solta, não haviam de parar nem por um só momento, e sempre haviam de ir mudando e passando; por isso, finalmente, Deus os representou na coisa mais inquieta, mutável e instável, que são os ventos, e muito mais quando embravecidos e furiosos (Dn 7.2).
PASSARAM OS GRANDES REIS
Enquanto passaram esses quatro impérios, que foi a terceira, quarta, quinta e sexta idade do mundo, entrando também pela sétima, quem seria capaz de dizer por quantas mudanças passou o próprio mundo? Quando o primeiro império começou, então começou também a idolatria, justo castigo do Céu, pois os homens que se fizeram adorar, chegaram eles também a adorar paus e pedras. Porém os reis que tinham sido os idólatras, foram eles mesmos canonizados depois pela adulação e a lisonja, e ou ainda vivos ou depois de mortos, tornaram-se ídolos. Assim surgiu Saturno, assim Júpiter, assim Mercúrio, assim Apolo, assim Marte, assim Vênus, assim Diana; e ainda que todos estes tenham deixado os seus nomes gravados nas estrelas, elas permanecem, mas eles passaram. Passaram os ídolos, e também passaram os oráculos com que nele respondia o pai da mentira, porque ao som da verdade do Evangelho, todos emudeceram.
PASSARAM OS GRANDES EXÉRCITOS E OS GRANDES COMBATENTES
Então começaram as guerras. O que direi dos exércitos inumeráveis, das batalhas campais e marítimas, das vitórias e triunfos de umas nações, e da derrota, ruína e servidão de outras, de maneira variada e alternada sempre? Só posso dizer que a glória e a alegria dos vencedores, assim como a dor e a afronta dos vencidos, tudo passou, porque tudo passa.
O exército de Xerxes, que foi o maior que o mundo já viu na antiguidade, constava de cinco mil navios e cinco milhões de combatentes. E por esses soldados terem unido, ao atravessarem o mar na altura do Helesponto, uma ponta do continente à outra ponta, e cavado e tornado navegável o monte Ato, o orador romano Marco Túlio Cícero disse que esse exército caminhava pelos mares a pé, e navegava os montes.
Mas todo aquele imenso e formidável aparato de guerra, que ao ser visto fez tremer a terra e o mar, tão rapidamente passou e desapareceu ao ser desbaratado e vencido, que dele só restou essa curiosa frase de Cícero. O próprio Temístocles, que com muito desigual poder o desfez e o pôs em fuga, também passou, como na Grécia e fora dela passaram todos os famosos capitães e suas vitórias. Passou Pirro, passou Mitridates, passou Filipe da Macedônia; passaram Heitor e Aquiles, passaram Aníbal e Cipião, passaram Pompeu e Júlio César, passou o grande Alexandre, nome singular e sem igual, e até Hércules, ou sendo um, ou muitos, todos passaram, porque tudo passa.
PASSARAM OS GRANDES HOMENS DAS CIÊNCIAS, LETRAS E ARTES
As Letras costumam ser citadas após as Armas. Em diversas partes no tempo desses impérios, floresceram variadamente todas as ciências e artes. Floresceu a filosofia, floresceu a matemática, floresceu a teologia, floresceu a astronomia, floresceu a medicina, floresceu a música, floresceu a oratória, floresceu a poética, floresceu a história, floresceu a arquitetura, floresceu a escultura. Mas assim como as flores murcham e secam, assim passaram os autores mais celebrados das letras, ciências e artes.
Na escultura passou Fídias e Lisipo; na pintura passou Timantes e Apeles; na arquitetura passou Meliagenes e Demócrates; na música passou Orfeu e Anfião; na história, Tucídides e Lívio; na eloquência, Demóstenes e Cícero; na poética, Homero e Virgílio; na astronomia, Anaxágoras e Ptolomeu; na medicina, Esculápio e Hipócrates; na matemática, Euclides e Arquimedes; na filosofia, Platão e Aristóteles; na teologia, Agostinho e Tomás de Aquino. E junto com todas as ciências passaram os sete sábios da Grécia, porque ou junto, ou dividido, tudo passa. Só a ética e a moral, como tão necessárias à vida e à virtude, parece que não haviam de passar; mas os platônicos, os peripatéticos, os epicureus, os cínicos, os pitagóricos, os estóicos, os acadêmicos, eles e suas escolas, todos passaram.
PASSARAM OS CATIVEIROS DO POVO JUDEU
(...) A república hebraica nasceu no cativeiro do Egito; e quem a observasse atentamente podia facilmente prever os três cativeiros pelos quais a nação de Israel foi arrancada da pátria. Primeiramente foi levada cativa por Salmanasar, quando então viveu entre os assírios; outra vez foi levada ao cativeiro por Nabucodonosor, e viveu desterrada entre os babilônios; e a terceira e última vez caiu cativa sob o comando de Tito e Vespasiano, e desta vez tornou-se desterrada entre todas as terras e nações do mundo.
PASSARAM OS PATRIARCAS, JUÍZES, REIS E CAPITÃES DE ISRAEL
A história do povo de Deus começou com o triunvirato dos três patriarcas Abraão, Isaque e Jacó, tantas vezes honrados e nomeados pela boca do próprio Deus; mas nem por isso todos deixaram de passar. José os sucedeu. Ele sonhou com as felicidades e as adorações de seu pai e irmãos. E ainda que todas se cumpriram, todas passaram, como se fossem sonhos. Esse povo teve três categorias de governo: a dos juízes, a dos reis e a dos capitães. E seja subindo ou seja descendo, as varas foram trocadas pelos cetros, e os cetros pelos bastões. Nenhuma daquelas categorias de governo foi estável, todas passaram. Entre os juízes passou a espada de Gideão, o arado de Sangar, e a queixada de jumento de Sansão. Entre os reis passou a valentia de Davi, a sabedoria de Salomão, e a piedade de Josias. (...)
PASSARAM AS ISRAELITAS FORMOSAS
E para que não fiquem esquecidas no silêncio as heroínas do povo de Israel, houve entre elas três que se destacaram pela formosura: Sara, Raquel e Ester; todas fatais a quem as amou. Sara a um peregrino com perigo; Raquel a um pastor com trabalhos, e Ester a um rei com desgostos e tribulações. Porém, a formosura dessas mulheres, antes que suas vidas se acabassem, já havia passado.
PASSARAM OS PROFETAS
Floresceram entre o mesmo povo dezesseis profetas reconhecidos, quatro maiores e doze menores. Porém, no espaço de três séculos, tanto os maiores quanto os menores, de Oseias a Malaquias, todos passaram. Passaram os milagres da vara, passaram os da serpente de metal, passaram os de Elias e Eliseu, e porque só faltava passar a Lei de Moisés e o sacerdócio de Arão, a Lei e o sacerdócio também passaram, porque tudo passa.
Eu gostaria de perguntar ao mundo, já que minha memória está cheia de tantas coisas que passaram, se existe alguma coisa de origem humana que não tenha passado. Às sete construções que a fama deu o nome de maravilhas do mundo, alguns acrescentaram como oitava o anfiteatro romano. Mas a oitava ou nona maravilha é o fato de vermos que todas essas maravilhas, que pareciam eternas, passaram. A primeira maravilha foram as pirâmides do Egito, a segunda os jardins suspensos da Babilônia, a terceira o farol de Alexandria, a quarta o colosso de Rodes, a quinta o mausoléu de Cária, a sexta o templo de Diana dos Efésios, a sétima a estátua de Júpiter Olímpico. E deixando o anfiteatro e as pirâmides, das quais só vemos hoje as ruínas, os jardins suspensos arrasaram-se, o colosso desfez-se, o mausoléu sepultou-se, a torre sumiu-se, o templo ardeu, o farol apagou-se e passou, porque tudo passa.
PASSARAM AS MAIORES CIDADES DA TERRA
(...) Nínive, corte de Nino, foi a maior cidade do mundo. Para atravessá-la de ponta a ponta levava-se nada menos que três dias a pé. Foi edificada de maneira arrogante para que nenhuma outra cidade a igualasse, como não a igualou. Mas onde está hoje essa Nínive? Ecbátana, corte de Arfaxade, e cidade que o texto sagrado chama potentíssima, era cercada de sete fileiras de muros, todos de pedras quadradas, cada uma de vinte e sete palmos por todas as faces, e as portas com a prodigiosa altura de 45 metros. Mas onde está essa Ecbátana? Susa, corte de Assuero, e metrópole de 127 províncias, o teto do seu principal palácio tinha a representação de um céu estrelado, fundado sobre colunas de ouro e pedras preciosas, e os muros eram de mármore branco e jaspe de diferentes cores. Podemos imaginar quão forte e invencível seria essa cidade, tendo sido ela construída para defender tão grande monarca, que dominava tantos reinos e guardava tantos tesouros. Mas onde está essa Susa?
Se houvéssemos de fazer a mesma pergunta às ruínas de Tebas, de Mênfis, de Bactro, de Cartago, de Corinto, de Sebasta, e da mais conhecida de todas, Jerusalém, necessário seria dar a volta pela redondeza da terra. Porém, todas essas cidades passaram; uma, ou talvez duas, passaram só no seu antigo esplendor; as demais, na sua totalidade. O mesmo podemos dizer das planícies, vales e montes sobre os quais se levantavam aqueles vastíssimos corpos de casas, muralhas e torres que formavam essas cidades. De algumas não se sabe os lugares onde estiveram; sobre outras hoje lavra-se, semeia-se e planta-se nos mesmos lugares onde essas cidades existiram, sem mais vestígios do que aqueles que os arados encontram quando rompem a terra. Isto é para que os homens, compostos de carne e sangue, não se queixem da brevidade da vida, pois as pedras também morrem; e para que ninguém se atreva a negar que tudo quanto existiu, passou, e tudo quanto existe hoje, passará.
PASSARAM OS GRANDES REINOS
(...) A Terra compõe-se de reinos, os reinos compõem-se de cidades, as cidades compõem-se de casas e campos, e principalmente de homens, e tudo isto, que tudo é Terra, perpetuamente está passando. Daniel, revelando a Nabucodonosor o significado de sua estátua, disse que Deus muda os tempos e as idades, e conforme essas mudanças, os reinos passam de uma parte para outra (Dn 2.21). Deste modo, passou o próprio reino de Nabucodonosor para a Pérsia, e dos persas para a Grécia, e dos gregos para Roma, e dos romanos para tantos outros quantos hoje têm coroas sobre a cabeça, os quais se devem lembrar que tudo passa, e que eles também passarão. (...) Não há pedra, nem telha, nem planta, nem raiz, nem palmo de terra sobre a Terra que não esteja sempre passando, porque tudo passa.
PASSOU A GRANDIOSIDADE DE ROMA
A maior ostentação de grandeza e majestade que já se viu neste mundo foi a pompa e magnificência dos triunfos romanos. O cortejo triunfal desfilava pelas principais ruas da cidade, naquele tempo vastíssima, caminhado em direção ao Capitólio. À frente vinham os soldados vencedores, proferindo aclamações de triunfo. Em seguida, viam-se, representadas ao natural, as cidades vencidas, as montanhas inacessíveis escaladas, os rios caudalosos atravessados por pontes, as fortalezas, as armas dos inimigos, e as máquinas com as quais foram vencidas. Via-se um grande número de carros trazendo os despojos e riquezas conquistados, e tudo o que era raro e admirável trazido como presentes das regiões agora sujeitas à coroa de Roma. Depois de tudo isto aparecia a multidão dos cativos, com alguns reis acorrentados; e por fim, em carroça de ouro e pedras preciosas, arrastada por elefantes, tigres ou leões domados, aparecia o general ou o imperador que trouxera aquele cortejo triunfal à Roma. E enquanto os formidáveis animais puxavam a carroça sobre a qual estava orgulhosamente sentado o principal herói de tudo aquilo, ele ouvia um servo dizer-lhe repetidamente aquele famosa e temível frase: “Lembra-te, homem: tu és mortal”.
Enquanto essa grande comitiva caminhava, as ruas, as praças, as janelas e os palanques estavam cobertos de uma imensa multidão, todos querendo ver o espetáculo. E se o filósofo Diógenes, com sua fina ironia, perguntasse quais eram os que passavam, se os do triunfo, se os que estavam olhando, não há dúvida de que a pergunta pareceria digna de riso. Mas o certo é que tanto os da procissão do triunfo quanto os que das janelas e palanques observavam, uns e outros igualmente passavam, porque a vida e o tempo nunca pára. Ou estando parados, ou caminhando, todos nós, com igual velocidade, passamos.
O TEMPO PASSA VELOZMENTE
(...) Nem a Primavera com as suas flores, nem o Verão com as suas espigas, nem o Outono com os seus frutos, nem o Inverno com os seus frios e neves, por mais floridos ou entorpecidos que pareçam, podem estar parados um só momento. Passam as horas, passam os dias, passam os anos, passam os séculos, e se houvesse hieróglifos com os quais pudéssemos pintar essa passagem veloz do tempo, teriam que ser todos com asas, não só correndo e fugindo, mas voando e desaparecendo.
TUDO PASSA, E NÓS TAMBÉM PASSAMOS
Todos estamos embarcados no mesmo navio, que é a vida, todos navegamos sob o mesmo vento, que é o tempo. E assim como no navio uns governam o leme, outros controlam as velas; uns vigiam, outros dormem; uns passeiam, outros estão sentados; uns cantam, outros jogam, outros comem, outros nenhuma coisa fazem, e todos igualmente viajam para o mesmo porto; da mesma forma nós, mesmo que não pareça, insensivelmente estamos passando sempre, e cada um aproximando-se cada vez mais do seu fim. Pois enquanto tu dormes o teu tempo anda. Eu disse pouco ao dizer que o tempo anda, porque corre e voa. Mas o fato é que nós dormimos. Porém, mesmo tendo os olhos abertos para ver que o tempo passa, só os mantemos fechados quando se trata de considerar que nós também passamos.
Tudo passa, como o navio que vai cortando as ondas, e depois que passou, não se lhe acha o rastro. Tudo passa, como a ave que, voando e batendo o vento leve, não deixa sinal de sua trajetória. Tudo passa, como a seta despedida do arco ao lugar destinado, que dividindo o ar, o qual logo se fecha e une, não é possível saber por onde ela passou.
(Trecho do monumental Sermão da Primeira Dominga do Advento, pregado na Capela Real, em Lisboa, em 1670, pelo maior pregador da língua portuguesa, Antônio Vieira. Adaptado e atualizado para o leitor do século 21).
Jefferson Mago Costa