E AGORA, DRUMMOND?
Em dezembro de 2009 visitei a cidade mineira de Itabira, onde nasceu Carlos Drummond de Andrade, o maior poeta brasileiro de todos os tempos. Estive na fazenda onde ele viveu sua infância e adolescência, na casa onde morou no centro da cidade, no colégio onde estudou, no museu e no memorial, onde são preservados alguns de seus objetos pessoais, que enriquecem a múltipla memória do poeta.
Comecei a ler Drummond ainda na minha adolescência. Posso recitar, de memória, muitos de seus poemas. Porém, não ignoro que em 1987, ele partiu para a eternidade afirmando não crer na existência de Deus.
Tendo nascido no início do século passado (1902), o menino Drummond foi aluno de estabelecimentos de ensino dirigidos por padres. Contudo, sua obra revela que esse seu contato com pedagogos e sacerdotes católicos não lhe forneceu respostas para as futuras perguntas que ele faria, e não o aproximou de Deus.
Entre os temas que alicerçam o imenso edifício poético deixado por ele – a vida, o amor, a morte, o homem solitário nas grandes cidades, sua infância em Minas, sua angústia, o eterno adeus a parentes e amigos, sua luta com as palavras, a difícil imposição de existir –, nota-se a quase ausência de assuntos ligados à alma, à vida eterna, a Deus.
Certa vez, durante uma entrevista, Drummond definiu sua posição diante desses assuntos: “Tenho um pensamento tranquilo a respeito das coisas sobrenaturais. Eu sou – parece pretencioso – agnóstico, aquela pessoa que não tem argumento nem para negar Deus nem para crer em sua existência. Não é posição de mineiro, é visão filosófica antiquíssima. Como não consegui achar uma solução para este problema, para que me atazanar com isto?”
Mas esse aparente desdém, esse dar de ombros, essa aparente indiferença com relação a Deus tinha raízes que se lançavam no poço de Mara (de águas existenciais amargosas – Êxodo 15.23), de onde fluiu o tom de resignação e amargura que norteou grande parte dos poemas produzidos por ele em sua maturidade e velhice. Já no seu primeiro livro, publicado em 1930, Drummond, um jovem de 28 anos, revelava como tinha sido sua vida até ali: uma tentativa de mostrar-se superior aos contratempos existenciais. Mas o jovem poeta não pôde esconder o sentimento de orfandade e vazio que havia dentro de sua alma, e acusou Deus de tê-lo abandonado:
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, porque me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco?
(Trecho do Poema de sete faces)
O distanciamento da grande questão que divide a humanidade e define o nosso destino eterno – a crença ou descrença na existência de Deus – foi delineando pouco a pouco o rumo que tomou a poesia de Drummond, uma poesia de resignação e lucidez, de análise terrivelmente amarga, existencialista (o mais legítimo existencialismo a Jean-Paul Sartre) da condição humana. Para Drummond, o homem é um órfão, entregue à sua própria sorte, e terá que viver por imposição ou teimosia:
O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta
que não macule ou perca a sua essência
ao contrário furioso da existência.
Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar da vida um vago indício,
a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.
(O relógio do Rosário, 1951).
Um dos pontos mais altos e expressivos da obra do poeta mineiro é o poema José:
E agora, José?
a festa acabou,
a luz apagou,
o povo sumiu,
a noite esfriou,
e agora, José,
e agora, você?
Você que é sem nome,
que zomba dos outros,
você que faz versos,
que ama, protesta,
e agora, José?
(trecho do poema José)
“E agora, José?” tornou-se a frase conotativa da situação de desespero e perplexidade existencial em que subitamente mergulham muitos seres humanos, especialmente aqueles que jamais tiveram um encontro pessoal de salvação com Jesus, que disse certa vez: "Vinde a mim todos os que estais cansados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração, e encontrareis descanso para vossas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve" (Mt 11.28-30).
Além de ter sido um dos quatro maiores poetas da América Latina (só o nicaraguense Ruben Dario, o chileno Pablo Neruda e o argentino Jorge Luis Borges tiveram envergadura literária tão relevante como a sua), Drummond tornou-se o grande “analista” do ser humano, que dispõe de inúmeros recursos modernos, mas descobre que isto de nada lhe vale quando vem a angústia; quando, mesmo vivendo em uma cidade superpopulosa, a solidão e a tristeza são suas companheiras de todos os dias.
José simboliza o próprio Drummond, ou todos os homens sem Jesus e sem esperança de salvação, materialmente ricos, porém espiritualmente pobres, miseráveis, perdidos nas pequenas e grandes cidades, distantes da companhia paternal e da graça de Deus:
Sozinho no escuro
qual bicho do mato,
sem teogonia,
sem parede nua
para se encostar,
sem cavalo preto
que fuja a galope,
você marcha José,
José, para onde?
(Trecho do poema José, 1942)
ENTRE O POETA E DEUS HAVIA UMA PEDRA NO MEIO DO CAMINHO
Após mudar-se de Itabira para o Rio de Janeiro, Carlos Drummond de Andrade cresceu na sua poesia, ampliou seu horizonte temático, universalisou-se, mas procurou manter-se sempre indiferente a Jesus, àquele que seria o Caminho, a Solução, a Porta de salvação para o personagem poético José, e para ele mesmo, Drummond. Entre o poeta e Deus havia uma pedra no meio do caminho:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
(No meio do caminho, 1942)
Mas não foi Deus quem colocou essa pedra no meio do caminho do poeta. Foi o próprio Drummond. A pedra da indiferença, do orgulho, da autossuficiência. “Sinceramente, sou uma pessoa terrivelmente corajosa, porque não espero nada de coisa nenhuma. Não tenho religião, não tenho partido político. Vivo em paz com meu critério moral. Vivo em paz com a minha consciência”.
Ao fazer essa declaração à imprensa em 1982, quando estava com 80 anos de idade, Drummond revelou que continuava sendo o mesmo poeta que escrevera o poema José em 1942, ou o poema Coisa miserável, em 1934: um poeta amargo, cético e serenamente fiel ao seu ateísmo.
“HÁ NO HOMEM UM VAZIO DO TAMANHO DE DEUS”
Quando Drummond mudou-se para o Rio de Janeiro em 1934, escreveu Coisa miserável, o poema que melhor revela o sentimento de orfandade e abandono existencial em que ele vivia, a nudez de sua alma solitária, amargurada, despida de Deus, desprovida de qualquer esperança na vida eterna:
Coisa miserável,
suspiro de angústia
enchendo o espaço,
vontade de chorar,
coisa miserável,
miserável.
Senhor, piedade de mim,
olhos misericordiosos
pousando nos meus,
braços divinos
cingindo meu peito,
coisa miserável
no pó sem consolo,
consolai-me.
Mas de nada vale
gemer ou chorar,
de nada vale
erguer mãos e olhos
para um céu tão longe,
para um deus tão longe
ou, quem sabe? para um céu vazio.
É melhor sorrir
(sorrir gravemente)
e ficar calado
e ficar fechado
entre duas paredes
sem a mais leve cólera
ou humilhação.
No Poema da necessidade, escrito em 1940, Drummond reconhece:
É preciso crer em Deus.
Mas o poeta resolveu manter-se fiel ao seu posicionamento agnóstico, ao seu triste estado de orfandade espiritual e resignação. Órfão de Deus, em toda a sua amarga e terrível plenitude:
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas a rude trabalho.
E o coração está seco.
(Os ombros suportam o mundo, parte do poema).
O POETA DIANTE DA MORTE
Drummond jamais aceitou o fato de sua filha, Maria Julieta, ter morrido antes dele. Achou que isto fora uma injustiça de Deus. Amava profundamente a filha, e logo após o sepultamento dela, pediu à cardiologista que o tratava que lhe receitasse “um infarte fulminante”. Anos antes, o poeta revelara sua atitude diante da morte:
“Aceito a idéia da morte. Como não tenho religião, não vou pedir a Deus para prolongar a minha vida, para me dar uma morte serena. Aceito a minha sorte. Não adiantaria ficar choramingando “quero viver, quero viver!”. Só quero morrer tanquilo comigo mesmo. Eu me desejo uma boa morte.
E foi em um completo estado de rejeição a Deus que o poeta partiu para a eternidade. Teve Drummond uma boa morte?
Quando o genial romancista russo Fiódor Dostoiévski escreveu a frase "Há no homem um vazio do tamanho de Deus", referiu-se tanto à necessidade que o ser humano tem de crer na existência do seu Criador, quanto às provas que o Criador colocou dentro de Sua criatura, acerca de Sua existência. (Veja o Salmo 139.7-12). Como o deslizar das águas de um imenso rio, o tempo passa levando consigo todas as gerações humanas que vêm e vão, uma após a outra. Porém, imutável sobre o incontável número de seres humanos que desaparecem tragados pela morte, pairam a idéia e a certeza da existência de Deus, brilhando como um sol no céu do Universo, proclamando sempre ao ser humano (quer ele tenha sido Drummond, ou eu, ou você): “Eu sou o Senhor teu Deus...”, Deuteronômio 5.6.
Jefferson Magno Costa
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