Jefferson Magno Costa
Três dias após ter assumido o governo de Cesárea – cidade construída por Herodes, e que viria a se tornar residência dos procuradores romanos – Festo visitou Jerusalém, e ali ouviu queixas contra o apóstolo Paulo, apresentadas pelos principais sacerdotes e maiorais judeus. Ora, Paulo já estava encarcerado em Cesárea, por ordem do ex-governador Félix.
Dias depois, comparecendo à presença de Festo, e reconhecendo que o governador era um homem indeciso, Paulo concluiu sua rápida defesa apelando para César. “Para César apelaste, para César irás”, respondeu-lhe o governador, At 25.12. Sobre o trono dos Césares estava assentado nada menos que o imperador Nero, matricida, sanguinário, incendiário, matador de cristãos.
Em sua Carta aos Romanos, Paulo escrevera que era dever de todo homem sujeitar-se às autoridades superiores, pois todas elas procedem de Deus, e foram por Ele constituídas. Mas chegou, inclusive, a lamentar que não era sem motivo que elas (as autoridades) traziam também a espada, Rm 13.1-7.
No ano 64 d.C., a espada veio através de Nero, quando ele ordenou que Roma fosse incendiada. Conta o historiador romano Cornélio Tácito em seu livro Anais, que à luz da cidade tomada pelas chamas, o monstro coroado tocava sua lira e cantava um hino sobre a destruição de Tróia. E imediatamente providenciou para que a culpa do incêndio caísse sobre os cristãos. Isso levou os romanos a praticarem contra os cristãos um dos mais terríveis massacres de todos os tempos.
A OPINIÃO DOS ROMANOS SOBRE OS CRISTÃOS
Crescendo até então à sombra do judaísmo, o cristianismo havia podido caminhar sob o olhar complacente dos poderosos. Porém, após aquela grave acusação, a religião cristã foi condenada, e os cristãos passaram a ser tratados como foras-da-lei, como criminosos.
Essa condenação foi historicamente avassaladora, pois coincidiu com a até então silenciosa rejeição do povo romano ao cristianismo. Os romanos daquela época, orgulhosos da posição que ocupavam no contexto histórico mundial, estavam persuadidos de que deviam a glória e a grandeza do seu império às origens sagradas de Roma, e à fidelidade que mantinham aos seus deuses.
Ao saberem que os cristãos abominavam a religião do Estado Romano em todas as suas formas, e pregavam que os homens de qualquer procedência ou nacionalidade eram iguais diante de Cristo, os romanos passaram a ver o cristianismo como uma ameaça, e a encarar os cristãos como um grupo de pessoas empenhadas na destruição do Império. Uma facção, portanto. Um mal que deveria ser arrancado pela raiz.
Na concepção deles, Cristo tinha sido um criminoso, um homem que ameaçara o Estado Romano, um subversivo condenado pela justiça de Roma, dignamente representada na pessoa do procurador Pôncio Pilatos. E para agravar essa perigosa e errônea concepção, surgiu a infamante acusação de Nero e a oficialização das perseguições, detonando assim o ódio popular contra nossos irmãos da Igreja Primitiva.
SURGEM OS PRIMEIRO DEFENSORES DO CRISTIANISMO
E foi em um cenário de perseguições, calúnias e muito sangue inocente derramado, que surgiram os primeiros defensores do cristianismo, os grandes apologistas da Igreja cujos membros foram submetidos à dura prova do fogo, da fúria dos leões e do fio da espada.
Como fonte histórica dessa época, os escritos mais antigos chegados até nós pertencem aos apologistas gregos cristãos do século II. O mais antigo desses documentos é uma tradução siríaca da Apologia, escrita por um cristão chamado Aristides, e datada do século IV, cujo original grego foi escrito no ano 125. (Vide Daniel Ruiz Bueno. Apologistas Griegos del Século II. Biblioteca de Autores Cristianos. Madrid. 1954.).
Essa tradução siríaca (que possibilitou a total reconstituição dos fragmentos gregos, e a comprovação da autenticidade dessa Apologia) foi descoberta pelo historiador norte-americano J.R. Harris em 1889, no convento de Santa Catarina do Monte Sinai.
Além da Apologia de Aristides, existem também, de autoria dos primeiros defensores do cristianismo, as obras de Justino, cognominado o Mártir (duas Apologias e o Diálogo com o Judeu Trifon), a obra de Taciano (Discurso contra os Gregos), as duas obras de Atenágoras (Legação em Favor dos Cristãos, e Sobre a Ressurreição dos Mortos), a obra de Teófilo de Antioquia (Três Livros a Autólico) e a de Hérmias, o Filósofo (O Escárnio dos Filósofos Pagãos.)
Todos esses homens viveram no segundo século depois de Cristo – precisamente no período em que a Igreja sofreu as maiores perseguições de toda a sua história. Por terem ocupado posições de destaque nas cidades gregas em que viveram, eles tiveram acesso aos poderosos da época, e puderam enfrentar, cheios de autoridade e fé, e conhecendo plenamente e Verdade, os homens que perseguiam e tentavam exterminar a Igreja.
Basta dizer que o grande teólogo, advogado e apologista cristão, Tertuliano, que viveu nos anos 155 a 220, escreveu veementemente às autoridades romanas (e ele também era romano), protestando contra as perseguições, e desafiando os perseguidores a investigarem sobre a autenticidade da fé cristã. Tertuliano argumentou com toda a autoridade que a magistratura lhe conferia:
“E agora, ó veneráveis juízes, prossegui na vossa ostentação de justiça, e acreditai-me, havereis de ser cada vez mais justos na opinião do povo quanto mais frequentemente sacrificardes os cristãos. Crucificai-nos, torturai-nos, condenai-nos, reduzi-nos todos a pó, se puderdes. (...) Não fazeis com isto senão chamar o mundo à nossa religião. Quanto mais nos abaixardes, mais depressa e mais alto subiremos; o sangue cristão que derramais é a semente que lançais à terra: ela brotará de novo e frutificará com maior abundância”. (Fragmento da Apologia de Tertuliano, reproduzido por M.Lincoln Schuster no livro As Grandes Cartas da História. Trad. M. Bandeira. Companhia Editora Nacional. Rio de janeiro. 1942. p.40.)
IRMÃO ARISTIDES, CRISTÃO E FILÓSOFO
Nascido e criado em Atenas, a cidade em cujo Areópago Paulo proferiu seu imortal discurso Ao Deus Desconhecido, Aristides, autor do mais antigo documento em defesa da Igreja, entre os que chegaram até os nossos dias, recebeu uma educação que lhe permitiu absorver as linhas gerais da cultura de sua época.
Seu discurso apologético revela que ele era um grande filósofo e excelente orador. E foi provavelmente sua curiosidade filosófica que o levou a procurar a Causa Primeira de todas as coisas, descobrindo consequentemente Deus.
Na época de sua conversão ao cristianismo, quem reinava sobre o Império romano era o imperador Adriano (78-138), o nono rei a sentar-se naquele trono, após Nero. Reinou dos anos 117 a 138. Por volta do ano 125, após testemunhar as calúnias e vexames sofridos por seus irmãos na fé, Aristides resolveu preparar uma defesa do cristianismo e enviá-la ao imperador Adriano.
M.K. Greffeken, grande historiador da Igreja Cristã, diz que “neste sentido, esta antiguíssima Apologia é para nós um documento não só precioso, senão francamente comovedor. Mostra o cristianismo iniciando de maneira heróica sua luta contra os adversários”. (Apud Daniel Ruiz Bueno, Op. Cit. p. 118).
UM DEUS SUPERIOR AOS DEUSES DOS ROMANOS
Aristides abre sua apologia relatando como a contemplação da harmonia do Universo e da força que move todos os corpos o levou a se aprofundar nos mistérios da existência de Deus.
“Eu, ó rei, por providência de Deus, vim a este mundo, e havendo contemplado o céu, e a terra e o mar, o sol e a lua e tudo mais, fiquei maravilhado diante de sua harmonia... Digo, pois, ter sido Deus quem ordenou e mantém todas essas maravilhas...”
Com essa límpida e admirável noção de Deus, Aristides inicia o seu combate ao politeísmo e à mitologia greco-romana, e vai preparando gradativamente o terreno para a apresentação da Fé Cristã e a descrição da vida dos cristãos. Ele diz ao imperador Adriano (e isso certamente ele havia aprendido nas cartas de Paulo) que a humanidade se encontra dividida em três grupos: gentios, judeus e cristãos. Entre os gentios, ele enumera os três grandes povos que os representam: os caldeus, os gregos e egípcios.
Não devemos deixar de lembrar que esses três povos tiveram uma importante participação na história dos judeus e da Igreja. Abraão era natural de Ur, na Caldéia. Seus ancestrais eram caldeus, e adoravam os deuses daquela região. Os judeus viveram 430 anos entre os egípcios, e foram testemunhas das inúmeras formas de idolatria ali praticadas. O Novo Testamento foi escrito em grego, em meio a uma civilização impregnada de cultura grega. Ao fazer, em particular, a crítica desses três povos, Aristides tinha suas razões.
O PANTEISMO CALDEU
Os caldeus são apresentados por Aristides a Adriano como adoradores de imagens mortas e inúteis. Adoravam também os elementos naturais – o Céu, a Terra, a água, o fogo, o vento, o Sol e a Lua. “Ora, argumenta Aristides, para que não tenhamos seus deuses roubados por ladrões, os caldeus os guardam com todo cuidado, sem observarem que o que guarda é maior que o guardado, e o que cria, maior que sua própria obra. Porque se os deuses deles são incapazes de salvarem a si mesmos das mãos dos ladrões, como poderão salvar a outros?”
Em seguida ele mostra porque os elementos naturais não representam o próprio Deus: “Os que creem que o céu é Deus, erram, pois vemos que ele é mutável (...) e obedece a uma certa ordem no seu movimento, e toda ordem tem o seu criador, e todo construído teve o seu princípio, e esse princípio é Deus. (...) O céu realiza sua marcha segundo o tempo, estabelecendo as estações (...) e é evidente que o céu não é Deus, e sim obra de Deus”.
E nesse mesmo tom e estilo ele vai mostrando porque os outros elementos também não são Deus: A terra não é Deus, "pois a vemos dominada, pisada e cavada pelos homens e animais, e manchada pelo sangue dos assassinatos, e transformada em depósito de mortos"; a água também não é Deus, "pois pode ser facilmente manchada e é usada para lavar todo tipo de imundície”; o fogo não é Deus, “pois foi criado para utilidade dos homens, e é usado até para cremação de cadáveres”.
Aristides apresenta também outros elementos, e mostra porque eles não devem ser considerados Deus, como os caldeus assim os consideravam.
O POLITEÍSMO GREGO
Quanto aos gregos, diz Aristides que apesar de se acreditarem sábios, “mostram-se mais néscios que os caldeus, pois creem em uma multidão de deuses que nasceram uns varões, outros fêmeas, escravos de todas as paixões, e praticantes de toda espécie de iniquidades”. Deuses que, segundo as próprias histórias contadas pelos gregos, têm-se mostrado adúlteros e assassinos, invejosos e rancorosos, parricidas e fratricidas, ladrões, feiticeiros e loucos. E passa a nomear todos eles, apontando os horrorosos vícios que lhes são atribuídos.
Aristides diz ao imperador Adriano que os gregos inventaram e adotaram tais deuses “a fim de que, tendo aqueles por advogados de sua maldade, pudessem eles entregar-se ao adultério, ao roubo, ao assassinato e a todo tipo de vícios, (...) fantasiando sobre os seus deuses coisas que não é licito nem dizê-las nem trazê-las à memória”.
A EXCÊNTRICA RELIGIÃO DOS EGÍPCIOS
Os egípcios são apresentados como mais torpes e mais néscios que os gregos. Aristides menciona então as histórias de crimes e incesto que envolveram a vida de Osíres, Ísis e Horus, os deuses máximos dos egípcios. Porém, mostra que os egípcios também adoraram animais irracionais, e se entregaram a todo tipo de loucura e impurezas. Na lista de seus deuses, entram a ovelha, o abutre, o gavião, o crocodilo, o gato, o cão, o lobo, a serpente e até a cebola e o alho!
OS JUDEUS NO CENÁRIO RELIGIOSO DA ÉPOCA
Falando acerca dos judeus, Aristides achou por bem fazer uma breve exposição de sua história, baseando-se no Velho Testamento (e ao mesmo tempo dando provas que o conhecia profundamente).
Em seguida, Aristides diz que os judeus levam sobre si uma grande culpa, pois entregaram Jesus a Pôncio Pilatos, “sem nenhum respeito aos benefícios que lhes havia feito, e às incontáveis maravilhas que ele havia realizado entre eles”.
Reconhece que os judeus adoram o verdadeiro Deus, mas não têm dele ainda um conhecimento completo, pois negam a Cristo, o seu Filho, e desse modo tornam-se semelhantes aos gentios.
A VERDADE SOBRE OS CRISTÃOS
E por fim Aristides faz uma apresentação dos cristãos. Diz quem é Jesus, “o Filho do Deus Altíssimo, que no Espírito Santo baixou do céu para a salvação dos homens”. Fala de sua morte, ressurreição e ascensão. Diz que os apóstolos ficaram com a responsabilidade de propagar o Evangelho. Os cristãos são, “entre todas as pessoas da terra, os que acharam a Verdade (...) Os mandamentos de Cristo eles os têm guardado em seus corações, e os observam. Não adulteram, não fornicam, não levantam falso testemunho, não cobiçam os bens alheios, honram ao pai e a mãe, amam a seu próximo, e julgam com justiça”. Que bom seria que isso tivesse continuado assim, não?
Aristides convidou o imperador Adriano a ler aquela que, “entre os cristãos, é chamada de Santa Escritura Evangélica, para que conheças que não digo estas coisas pela minha própria conta, ou deixei de falar a verdade”.
E finaliza: “Até aqui, ó rei, tenho dirigido a ti o meu discurso, escrevendo tudo o que pela verdade tem vindo à minha mente. Por isso cessem já teus sábios insensatos de falar contra o Senhor, porque convém a vós outros venerar o Deus Criador, e dar ouvido à suas palavras incorruptíveis, a fim de que, escapando ao juízo e ao castigo, sejais declarados herdeiros da vida eterna”.
Este foi o primeiro discurso apologético escrito por um cristão no século II, cujo nome era Aristides, um dos nossos irmãos em Cristo. Através dos argumentos que ele apresentou, Deus tocou no coração do imperador Adriano (a moderna escritora francesa Marquerite Yourcenar escreveu, em forma de ficção, as Memórias de Adriano). Durante os anos em que aquele rei manteve-se no poder, não permitiu que os cristãos continuassem sendo perseguidos, ou torturados, ou mortos.
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