PR. JEFFERSON MAGNO COSTA
Excelentíssimo senhor Presidente da
Academia Evangélica de Letras do Brasil, Reverendo Guilhermino Cunha;
excelentíssimas demais autoridades presentes; caríssimos convidados, nobres
confrades e confreiras:
Ninguém
hoje espere ingenuamente tornar-se um hábil escritor, seguro do seu ofício e
influenciador de sua geração sem, antes, esforçar-se para conhecer as regras e
as riquezas expressionais de sua língua.
Só
conseguiremos atuar impactante e eficientemente como escritores evangélicos se
nos esforçarmos para redescobrir e dominar os amplos recursos da língua
portuguesa.
É
nosso dever estudá-la permanentemente, com a mesma persistência que o aclamado
poeta François Coppé demonstrou no estudo do francês. Ele chegou a responder a
uma norte-americana que lhe perguntou se ele falava inglês: “Não, minha
senhora... Continuo a aprender francês”.
A língua que foi enaltecida por Camões, Antônio
Vieira, Manuel Bernardes, Herculano, Camilo Castelo Branco, Almeida Garret,
Machado de Assis, Eça de Queiroz, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Fernando
Pessoa, Drummond, Florbela Espanca, Luís Fernando Veríssimo, Henriqueta Lisboa,
Cecília Meireles e tantos outros escritores notáveis na antiguidade e na modernidade,
necessita hoje mais e mais de embaixadores evangélicos que a enobreçam, que a enriqueçam,
que a prestigiem, que a divulguem pelo mundo inteiro por meio de obras-primas
de interesse cristão e universal.
Assim fizeram em inglês os nossos irmãos em
Cristo John Bunyan, com O Peregrino;
John Milton, com O Paraíso Perdido;
C. S. Lewis, com a série As Crônicas de Nárnia,
e outras obras. Isto só para citarmos alguns dos grandes escritores
evangélicos que escreveram e ultrapassaram as fronteiras evangélicas,
conquistando também milhares de leitores no mercado secular.
Nós, escritores evangélicos, estamos em
dívida para com nossa língua, a portuguesa; língua que o poeta Manuel Bandeira
usou para, em um soneto, honrar o imortal autor de Os Lusíadas, Luís Vaz de
Camões. Disse Bandeira:
Quando
n'alma pesar de tua raça
A
névoa da apagada e vil tristeza,
Busque
ela sempre a glória que não passa,
Em
teu poema de heroísmo e de beleza.
Gênio
purificado na desgraça,
Tu
resumiste em ti toda a grandeza:
Poeta
e soldado... Em ti brilhou sem jaça
O
amor da grande pátria portuguesa.
E
enquanto o fero canto ecoar na mente
Da
estirpe que em perigos sublimados
Plantou
a cruz em cada continente,
Não
morrerá sem poetas nem soldados,
A
língua em que cantaste rudemente
As
armas e os barões assinalados.
“Minha pátria é minha língua”, disse o genial
poeta português Fernando Pessoa. E também é a nossa, a pátria dos escritores
evangélicos brasileiros. O gramático Napoleão Mendes de Almeida fez uma
oportuna advertência no prefácio de sua Gramática
Metódica. Disse ele:
“Conhecer
a língua portuguesa não é privilégio de gramáticos, senão de todo brasileiro
que preza sua nacionalidade. É erro de consequências imprevisíveis acreditar
que só os escritores profissionais têm a obrigação de saber escrever. Saber
escrever a própria língua faz parte dos deveres cívicos.”
Todavia,
não é minha intenção deixar subentendido aqui que só escrevem bem aqueles que
possuem conhecimentos gramaticais tão sólidos como os de um Napoleão Mendes de
Almeida, os de um Celso Cunha ou os de um professor Pasquale Cipro Neto, e
outros. Não cheguemos a tanto; a não ser que tenhamos inegável vocação para o
estudo específico da língua, conforme tiveram os pastores Eduardo Carlos
Pereira e Vittorio Bergo, autores de gramáticas e de outros trabalhos de
natureza filológica nacionalmente reconhecidos.
"Dicionarista
e gramático não são sinônimos de bom escritor. Tem-se observado, por exemplo,
que os grandes dicionaristas, os grandes gramáticos, embora conhecendo todos os
recursos da palavra, todos os processos que levam uma pessoa a escrever bem,
raramente são grandes escritores”, foi o que nos lembrou o filólogo português
Cândido de Figueiredo.
É um
fato que todas as histórias das literaturas confirmam. Escrever bem requer algo
mais do que sólidos conhecimentos linguísticos. Requer sensibilidade,
imaginação e um toque pessoal de arte (também conhecido como originalidade). Em
uma palavra: talento.
Portanto,
ninguém adquire capacidade e sensibilidade literárias lendo tão-somente
gramáticas. O estudo da gramática não é a melhor forma de alguém aprender a
amar ou dominar o seu idioma. O estudo da gramática não faz escritor, faz
filólogo. Só os grandes escritores são capazes de nos ensinar a escrever bem.
O
melhor, o mais agradável e fecundo caminho para alguém familiarizar-se e passar
a amar o seu idioma é lendo os melhores livros dos melhores escritores da
literatura que esse idioma produziu. Mas fazer essa leitura não significa que
devemos dar um mergulho em milhares de obras; o essencial é que leiamos as
melhores.
Para
quem já é ou deseja tornar-se escritor, o amor ao idioma materno é fundamental.
O poeta português António Ferreira (1528-1569), grande apaixonado pela língua
portuguesa, numa época em que muitos escritores portugueses escreviam em
espanhol por se envergonharem do seu idioma ou ambicionarem maior notoriedade,
deixou-nos a seguinte estrofe de uma ode:
Floresça, fale, cante,
ouça-se e viva
a portuguesa língua, e já
onde for,
Senhora vá de si, soberba e
altiva;
Se até aqui esteve baixa e
sem louvor
Culpa é dos que a exercitam,
Esquecimento nosso e
desamor.
Nós,
brasileiros, que produzimos um soneto de exaltação à língua portuguesa, como
este belíssimo e perfeito, escrito pelo poeta carioca Olavo Bilac:
Última flor do Lácio,
inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e
sepultura;
Ouro nativo que na ganga
impura
a bruta mina entre os
cascalhos vela.
Amo-te assim, desconhecida e
obscura,
Tuba de alto clangor, lira
singela,
Que tens o trom e o silvo da
procela,
E o arrolo da saudade e da
ternura.
Amo o teu viço agreste e o
teu aroma
De virgens selvas e de
oceano largo:
Amo-te, ó rude e doloroso
idioma!
Em que da voz materna ouvi:
“Meu filho”,
Em que Camões chorou no
exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor
sem brilho.
Nós,
que temos um lastro, uma herança tão rica e tão bela composta de obras
literárias que vêm sendo escritas por exímios artistas da palavra, estamos
hoje, em muitos aspectos, em uma situação de vergonhoso desconhecimento das
riquezas do nosso idioma.
O
jornalista maranhense Lago Burnett, que durante muitos anos chefiou a redação
de O Jornal do Brasil, descreveu num
momento de desabafo no seu livro A Língua
Envergonhada, a atitude de muitos brasileiros para com essa que é
considerada a segunda língua mais rica em sonoridades, a segunda dotada de
maior musicalidade, entre todas as que se derivaram do Latim. (Só para os
curiosos: a primeira é o italiano). Eis o texto, veemente e irônico, do
jornalista:
"O
brasileiro não suporta a sua língua. Se lhe fosse permitido escolher,
preferiria qualquer outro idioma, até mesmo o sânscrito, o latim, o hebraico, o
iídiche, o patoá, o banto. Conquanto não fosse o português, pouco importaria
que se tratasse de língua morta, extinta ou dialeto. Por força do colonialismo
cultural, acentuado pela linguagem mercadológica dos veículos de comunicação,
de muito bom-grado a opção brasileira recairia sobre o inglês – não o de
Oxford, mas o da Praça Mauá.
"Coramos
de pudor, criando situações embaraçosas para nós próprios, toda vez que não
conseguimos atinar, de público, com o significado de uma expressão
anglo-saxônica, e nos mortificamos de despeito por não conseguir recitar com
sotaque nova-iorquino uma ode olímpica à alienação de Ipanema. Não por
veneração reverenciamos o idioma de Shakespeare, mas por mera subserviência ao
sentimento mercantil do multinacionalismo linguístico." (A Língua Envergonhada. 3a Ed. Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1991, p. 15).
E
essa situação de vergonha e descaso pela língua portuguesa demonstrados por
muitos dos que a usam não é tão recente, conforme alguns poderiam imaginar. De
tanto a ultrajarem, a aviltarem, a envilecerem pelo uso desleixado e
vergonhoso, os intelectuais de Portugal reagiram e passaram a patrulhar e
censurar os maus usuários dessa língua outrora enobrecida por Antônio Vieira,
Eça de Queiroz, Machado de Assis e outros grandes autores. E foram tão severas
as recriminações dos intelectuais portugueses, que o romancista carioca Lima
Barreto, em um de seus quatro grandes romances, o Triste Fim de Policarpo Quaresma, publicado em 1915, levou seu
personagem principal a redigir o seguinte e irônico requerimento:
"Policarpo
Quaresma, cidadão brasileiro, funcionário público, certo de que a língua
portuguesa é emprestada ao Brasil; certo também de que, por esse fato, o falar
e o escrever em geral, sobretudo no campo das letras, se veem na humilhante
contingência de sofrer continuamente censuras ásperas dos proprietários da língua;
sabendo, além, que, dentro do nosso país, os autores e os escritores, com
especialidade os gramáticos, não se entendem no tocante à correção gramatical,
vendo-se, diariamente, surgir azedas polêmicas entre os mais profundos
estudiosos do nosso idioma – usando do direito que lhe confere a Constituição,
vem pedir que o Congresso Nacional decrete o Tupi-Guarani como língua oficial e
nacional do povo brasileiro. Cônscio de que a Câmara e o Senado pesarão o seu
alcance e utilidade, pede e aguarda deferimento. "
Quando
o jornalista Giovanni Ricciardi foi ao apartamento do escritor Miguel Jorge a
fim de entrevistá-lo para o livro Auto-retratos
(que reúne 23 entrevistas com escritores brasileiros contemporâneos, e foi
publicado pela Editora Martins Fontes em 1991), viu este lembrete na parede da
sala de trabalho de Miguel Jorge:
Refazer, refazer sempre.
Refazer, custe o que custar.
Refazer cada página,
parágrafo, frase, palavra...
Apesar
de o lembrete parecer um tanto ingênuo, não podemos ignorar que este é um dos
segredos praticados por todos os grandes escritores. Eles escreveram muito para
eles mesmos, antes de escrever para os outros.
Todos
os livros sobre arte de escrever aconselham a não nos contentarmos com a
primeira redação de um texto. Devemos aperfeiçoar esse texto, reescrever suas
frases, corrigir, corrigir, até que pareça impossível fazer melhor.
O
romancista francês Gustave Flaubert costumava reescrever cinco ou até seis
vezes uma única página ou um único parágrafo de suas obras em uma semana. Escrevendo numa
época em que era comum os escritores publicarem de 20 a 50 livros (Balzac, por
exemplo, só para o famoso conjunto de romances intitulado A Comédia Humana, escreveu 89 obras), Flaubert só escreveu seis.
Mas são seis obras-primas. Seu romance Madame
Bovary é considerado, no aspecto técnico e estilístico, uma obra de arte
tão perfeita como uma sinfonia de Beethoven, a pintura da Capela Sistina
realizada por Michelangelo, ou o quadro da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci.
Na
arte de escrever, há muito mais transpiração que inspiração.
Porém entre nós, escritores evangélicos, essa proporção de inspiração e
transpiração não é exatamente aquela referida pelo inventor norte-americano
Thomas Alva Edson, de 90% de transpiração e 10% de inspiração. O escritor
evangélico é um canal sensível à inspiração que nos é dada por Deus, mas
ninguém deve ficar estática e ingenuamente aguardando que a inspiração desça do
Céu.
Sentindo-se
inspirado ou não, o escritor terá de se sentar todos os dias diante de sua
mesa de trabalho, mesmo que seja para escrever uma única frase aproveitável. É
do hábito de sentar-se todos os dias diante de uma folha de papel em branco ou
de um teclado de computador, que o nasce livro. Portanto, a obra de arte
literária nasce do trabalho artesanal, perseverante do escritor.
Nunca
será demais reafirmar que os maiores escritores brasileiros e estrangeiros
foram incansáveis aperfeiçoadores do seu estilo, do seu texto. Carlos Drummond
de Andrade, o maior poeta da moderna poesia brasileira, alcançou a riqueza
expressiva e a perfeição que o destacaram dentre os demais poetas de sua
geração, graças ao fato de ter sido um incansável "domador" de palavras. Em um de
seus poemas, O Lutador, ele confessa
o quanto lhe era difícil trabalhar com elas:
Lutar com palavras
É a luta mais vã.
Entanto lutamos
Mal rompe a manhã.
São muitas, eu pouco.
Algumas, tão fortes
Como o javali.
Não me julgo louco.
Se o fosse, teria
O poder de encantá-las.
Mas lúcido e frio,
Apareço e tento
Apanhar algumas
Para meu sustento
Num dia de vida.
............................
Insisto, solerte.
Busco persuadi-las.
Ser-lhe-eis escravo
De rara humildade.
Guardarei sigilo
De nosso comércio.
Na voz, nenhum travo
De zanga ou desgosto.
Sem me ouvir deslizam,
Perpassam levíssimas
E viram-me o rosto.
Lutar com palavras
Parece sem fruto.
Não têm carne e sangue.
Entretanto, luto.
O
escritor português Antônio Lopes Vieira adverte que “há uma dignidade de
sintaxe, assim como há uma educação de maneiras; cometer certos erros
gramaticais pode ser o mesmo que cuspir no chão.” A arte de escrever tem regras
que não devemos infringir se não quisermos passar por mal educados.
No
seu famoso Discurso sobre o Estilo, o Conde de Buffon, escritor francês,
afirmou que “somente as obras bem escritas passam à posteridade, visto que as
novas descobertas e os fatos novos fazem com que os livros mais científicos se
tornem obsoletos, ultrapassados.”
O
que permanecerá interessante nesses livros será o estilo, a beleza, a arte, a
originalidade com que suas páginas foram escritas. Portanto, um livro, antes de
ser publicado, tem de ser revisado, polido, aperfeiçoado, com paciência e
cuidado, durante meses, ou até durante anos. É o que têm feito os grandes
escritores, tanto seculares quanto evangélicos. Tenho dito.
Acadêmico Jefferson Magno Costa
(Discurso
pronunciado na Academia Evangélica de Letras do Brasil, em 08 de Agosto de
2016)
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